São Paulo, quinta-feira, 18 de dezembro de 1997
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A Aids agora

VICENTE AMATO NETO; JACYR PASTERNAK

Nos anos em que convivemos com a Aids, aprendemos a tratar muito melhor as infecções oportunistas

VICENTE AMATO NETO e
JACYR PASTERNAK
Tivemos, como médicos, uma experiência única no acompanhamento da história da epidemia -do início, quando nem se conhecia a causa, até agora.
A Aids mudou muito. Os doentes que diagnosticávamos no começo eram realmente muito graves, e as sensações de impotência ou desespero sucediam comumente. Sentíamo-nos inúteis: se o paciente escapava de uma infecção oportunista, acabava adquirindo outra.
É bom que se diga que, em medicina, estávamos acostumados com mortalidade alta no começo e no final da vida. Jovens, entre 20 e 40 anos, morriam muito pouco; era assustador detectar uma doença capaz de eliminar pessoas exatamente nessa faixa etária.
Não possuíamos, no princípio, remédio eficiente contra o agente da moléstia. Até a entrada do AZT na liça terapêutica, nada funcionava de fato.
Percebíamos, em 1984-85, que grupos de risco eram um modo inadequado de ver a epidemia. Deveríamos incriminar comportamentos, não plêiades. A doença parecia não se limitar a segmentos definidos e, para nosso susto, mostrava imenso potencial de difusão.
Pior do que isso, parecia claro que o longo período de incubação garantia que portadores do HIV teriam um prazo grande para transmitir a infecção a outros sem perceber seu estado.
Imaginávamos no final da década de 80, ainda com o AZT, uma situação potencialmente caótica, com nossos hospitais lotados e o sistema de saúde explodindo. Vislumbrávamos -e, infelizmente, nesse aspecto tínhamos razão- que nossa estrutura médico-assistencial pioraria cada vez mais.
Erramos: ainda bem. Felizmente, a disseminação do HIV por transfusão foi bem contida, pelo menos nos locais em que os bancos de sangue fazem a triagem adequada. Erramos também porque, nos anos em que convivemos com a Aids, aprendemos a tratar muito melhor as infecções oportunistas.
Surgiram mais remédios antivirais, alguns dos quais construídos em modelos de computador muito refinados. Os hospitais hoje têm menos pacientes com Aids do que no final da década de 80. Os doentes vivem melhor; provavelmente, sua sobrevida foi "esticada" em pelo menos três ou quatro vezes.
Por incrível que pareça, nosso bem-amado governo deu uma dentro, garantindo frequentemente a todos os pacientes os remédios convenientes. Este é o único país do mundo que faz isso -e faz muito bem, já que essa conduta tem até boa relação custo/benefício.
O enfermo com Aids, tratado, continua trabalhando e colaborando com a comunidade. Isso sai muito mais barato que relegá-lo a um leito de hospital, considerando o ponto de vista econômico e abstraindo a parte humana.
A Aids mudou igualmente no aspecto epidemiológico. Há uma pauperização da moléstia, que é cada vez mais dos pobres e do Terceiro Mundo.
As primeiras vítimas no Brasil eram ricas; vinham de San Francisco, Nova York e Paris. Como o único preconceito que nossa elite não tem é o de transar com pobre, a doença espalhou-se exatamente entre os que possuem menos instrução, recursos e capacidade de usar métodos profiláticos.
A pauperização acompanhou-se da feminização. No começo, a proporção era de 30 homens para cada mulher. Agora, está por volta dos três ou quatro para uma, com tendência a piorar. Os dois processos correm juntos: mulheres, de modo geral, são mais pobres.
A doença passou a ser problema seriíssimo entre os viciados em drogas endovenosas, seus pares sexuais e muitas mulheres que não sabem que seus companheiros são bissexuais.
O contingente de crianças que adquirem HIV por meio das mães aumenta. O que mais nos dói é que isso poderia ser prevenido em provavelmente 90% das situações, com o uso de drogas anti-HIV no momento adequado.
Isso teria lugar se houvesse atendimento decente à gravidez e ao parto e se todas as mulheres recorressem ao pré-natal de maneira correta. Mas é sonho. Se acontecesse, não estaríamos no Brasil; talvez no Canadá ou na Suécia.
Apesar de o governo fornecer remédios, a Aids é bem diferente entre ricos e pobres. Os ricos só excepcionalmente não contam com bom tratamento. Mantêm longos períodos de saúde muito satisfatória, precisando apenas submeter-se a exames periódicos.
A pobreza é ainda pior do que a Aids; frequentemente, nem remissão tem. Os pobres estão mais expostos à tuberculose, tratam mal da doença por ser menos informados, ficam às vezes sem remédios e, quando precisam de hospital, têm que se valer dos públicos, pois as inefáveis medicinas de grupo fogem da Aids como o demo da cruz.
O "New England Journal of Medicine" comparou a sobrevida, nos EUA, de doentes de Aids atendidos por infectologistas e por outros médicos. Conclusão clara: os doentes aos cuidados daqueles vivem durante fases pelo menos três vezes maiores. Na verdade, nesse aspecto, a Aids não difere de tantas outras doenças que nos afligem.

Vicente Amato Neto, 70, infectologista, é professor titular do Departamento de Doenças Infecciosas e Parasitárias da Faculdade de Medicina da USP (Universidade de São Paulo).

Jacyr Pasternak, 57, infectologista, é médico-assistente da Divisão de Clínica e Moléstias Infecciosas e Parasitárias do Hospital das Clínicas da USP.

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