São Paulo, domingo, 21 de dezembro de 1997
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Um ano que vai entrar para a história

JURANDIR FREIRE COSTA
ESPECIAL PARA A FOLHA

"Festim Diabólico" é um dos grandes filmes de Hitchcock. Dois jovens ricos e cultos decidem pôr em prática suas teorias sobre a superioridade de alguns humanos sobre outros. Dão uma festa, estrangulam um jovem "amigo" a quem consideravam "inferior", escondem o corpo num baú e convidam, entre outros, os pais da vítima, sua namorada e o professor com quem aprenderam que os "fracos" são inúteis. Um toque de requinte completa a obra de arte: o jantar é servido em cima do baú onde estava o cadáver.
A conversação é leve, sofisticada e animada. A certa altura, alguém sugere à namorada da vítima que deixe a revista de beleza feminina da qual era colunista para trabalhar numa editora de livros filosóficos. Rindo, como o bom tom exige, ela responde com ar "blasé": "Oh! Letras pequenas, grandes palavras! Isso não vende!".
A festa continua. Um dos assassinos começa a defender a idéia do direito que têm os "superiores" de eliminarem os "inferiores" e, diante da reação indignada do pai da vítima, que não sabia o que ocorrera ao filho, pede a opinião do professor. Sarcasticamente ele responde que concorda e justifica por quê: "Já pensaram quantos problemas seriam resolvidos: desemprego, pobreza, fila de teatro".
Uma convidada deleita-se com a espirituosa brincadeira e desenvoltamente replica: "Pois é, difícil encontrar lugar para o novo musical". Findo o ritual macabro, o mais frio dos assassinos comenta: "Esta festa merece ficar para a história". O desfecho dá o recado de Hitchcock. O professor descobre horrorizado o que aconteceu e, transtornado, diz: "Minhas próprias palavras voltam-se contra mim. Vocês deram a elas um sentido com o qual nunca sonhei".
A moral da história é clara. Número um, o direito à vida e à dignidade moral é um bem inalienável e devido a todos; número dois, a "barbárie" vegeta nas sarjetas, mas também em meio a perfumes finos, taças de champanhe, leviandades "inocentes", bom gosto musical e cultura livresca. A atrocidade não mora só no submundo. A nata do "grand monde", dos salões intelectuais ou endinheirados, pela omissão e irresponsabilidade, pode ser tão duramente cruel quanto qualquer bandido de casaca ou pés descalços. Basta não pensar no que diz, faz ou ensina. Basta acreditar que a proteção imaginária de que goza, pelo "status" que possui ou pela adulação dos serviçais, pode poupá-la das consequências de suas ações.
O "barbarismo civilizado" do materialismo instrumentalizador de seres humanos não se contenta em recitar a arrogante máxima "letras pequenas, grandes palavras, não vende!". Até aí vai o cinismo oportunista. Hoje fazemos pior. Ridicularizamos a autoridade da tradição e dos valores e impedimos ativamente os sujeitos de abandonarem a posição de objeto que ocupam. Trocando em miúdos, toda reação contra a "des-moralização" da vida ética e toda reserva de pudor de nossa vida pública ou privada são sistematicamente violentadas pelo poder a serviço do dinheiro.
Eventos religiosos tornam-se feira de negócios; crenças políticas são rebaixadas, sob escárnios, a resmungos de incompetentes; homicídios brutais e mutilantes transformam-se em "produtos" sensacionalistas; corpos, sexos e sentimentos são usados como iscas para a pesca de consumidores, enfim, dignidade, honra e compromisso tornam-se matéria de aposta na corrida da corrupção.
Diferentes das ditaduras e dos totalitarismos, na nova barbárie os dissidentes não são postos na cadeia, exterminados em campos de concentração ou exilados em gulags siberianos. As diferenças de pensamento e estilos de vida são incitadas, exaltadas, para em seguida se tornarem "mais um artigo da moda" vendáveis, compráveis e anunciáveis como objetos de ostentação, cobiça, inveja e fonte de frustração para "os que não chegaram até lá". O objetivo é converter todos ao credo do "valemos o que pesamos em dinheiro", quem se interessar pelo jogo, muito bem, quem não se interessar, amém!
Falando a respeito da perversão, Lacan revela uma das facetas mais atrozes do que Hannah Arendt chamou de banalidade do mal. Diz que Sade, mais do que uma personagem, é uma abreviatura; um "made in" perverso colado à montagem de redução do outro a objeto. Agindo compulsiva e rotineiramente, Sade não é "um sádico", no sentido dado ao termo na linguagem corrente. Seu prazer não está na dor do outro, o que seria típico do sadismo. O gozo sadeano é o da humilhação; é o de tornar o outro impotente, submisso e sem vontade.
A expressão de Lacan é perfeita, na perversão atinge-se o humano em seu pudor, ou seja, no sagrado de todos nós. Desqualificar o sagrado significa anular nosso desejo de transcender a condição de objeto, fantasiando o que somos ou devemos ser, em resposta ao desejo de um outro tido como fonte de justiça, bondade, correção, em suma, eticidade.
Este outro pode ser Deus, a História, a Razão, a Tradição, o Todo, o Sumo Bem ou a Felicidade, pouco importa. Importante é que agindo como sujeitos agimos moralmente, isto é, não concedemos a ninguém ou a nada o direito de manipular nossas vidas como meios à serviço de fins. Agir moralmente é fazer da vida ética seu próprio fim e não subordiná-la a nenhum outro propósito.
Não é isso o que acontece na cultura do "deus lucro" e de seu fetiche, o dinheiro. Quando governantes e governados admitem com uma candura assustadora que tudo deve ser sacrificado à estabilidade da moeda brasileira, não podemos deixar de perguntar: o que se quer salvar é o real ou a dignidade da vida humana? O sono da razão pode produzir monstros. Mas o sono da ética produz algo bem mais grave, a incapacidade e o desinteresse em discernir o que é ou não monstruosidade. Enfileirar lado a lado "desemprego, pobreza, fila de teatro e de musicais", como no "Festim Diabólico", não difere muito de falar de miséria, fome, violência, delinquência, desamparo de velhos e crianças como se fossem sintomas do "nervosismo das bolsas" ou de defeitos de ajustamento na dinâmica do mercado.
A insensatez é patente, pois a questão é: onde, nisso tudo, entram os dedos sem impressões digitais, gastas pela exploração do trabalho infantil. Onde entram os corpos descarnados das crianças africanas; a apatia das crianças prostituídas pelo "turismo sexual" no Nordeste ou os rostos rancorosos dos pequenos delinquentes do Rio ou São Paulo que aprendem o gosto do ódio e da vingança junto com a comida que apanham no lixo, o pontapé do garçom do botequim e o "não!" ao pedido de esmola no sinal de trânsito!
Podem comemorar, "senhores bilhões de dólares" e intelectuais globalizados! Este ano merece entrar para a história. O banquete em cima do cadáver está absolutamente impecável. "Merry Christmas" e "Happy New Year". A propósito, além do champanhe exquis, não esqueçam os tranquilizantes, os antidepressivos e os soníferos para suportarem tanto sucesso, tanta felicidade e tantas medalhas oferecidas pelos "vencedores e superiores" do "primeiro mundo".

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