São Paulo, domingo, 2 de fevereiro de 1997
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Os caçadores de cabeças

RICARDO BONALUME NETO
ESPECIAL PARA A FOLHA

Ao mesmo tempo que desvendou um crime cometido faz 20 anos, o trabalho de um antropólogo da Universidade Federal do Paraná resgatou a reputação de uma pequena tribo de índios da Amazônia, que foram injustamente acusados de serem bárbaros cortadores de cabeça. Sem dúvida eles cortaram algumas cabeças. Mas os motivos não eram fúteis.
Graças ao ano e meio em que viveu entre os índios Arara, da região da rodovia Transamazônica, no Pará, o antropólogo Márnio Teixeira-Pinto pôde explicar uma contradição. Por que uma das tribos amazônicas mais dóceis, que historicamente se sabe ter tido contatos amistosos com os "brancos" durante a época colonial e imperial, de repente causaram a morte de quatro pessoas na década de 70, esquartejando seus corpos e sumindo com suas cabeças?
A resposta a essa pergunta está na tese de doutorado sobre os Arara, defendida por Márnio no Museu Nacional, no Rio, e orientada por Eduardo Viveiros de Castro.
A tese foi considerada o melhor doutorado de 1996 pela Anpocs (Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais), que deverá pagar o custeio de sua publicação em livro em 97.
Os Arara se adaptaram bem à idéia de ter um antropólogo entre eles, mas o tema "guerra" foi sempre algo delicado. Eles às vezes faziam visitas a antigas aldeias, mas davam um jeito de evitar a presença do pesquisador, "desconversando".
É compreensível. Em uma dessas aldeias desocupadas, os funcionários da Funai encontraram duas das cabeças que tinham sido cortadas na década de 70. As outras duas nunca mais foram achadas.
É provável, especula o antropólogo, que os Arara tenham dado um jeito de sumir com elas, depois que começaram a ter contatos mais amistosos com os "brancos", e a existência dos troféus passou a ser algo constrangedor.
"Eles provavelmente deram fim às cabeças, como que para apagar o passado de conflito", diz ele. Do ponto de vista dos Arara, eles é que se dignaram a fazer contato com os brancos, e não o contrário.
O ritual no qual os crânios eram usados continua sendo feito, já que faz parte da visão de mundo desses índios.
A diferença é que agora uma "cabeça" de lama, colocada sobre um tronco chamado ieipari, faz o papel do crânio do inimigo.
A cerimônia relembra o mito de origem dos Arara. Os índios cantam para esse tronco com uma caveira em cima e conversam com ele (a música usada nesse ritual algo macabro é hoje o hino semi-oficial da área de etnologia da UFPR, brinca Márnio).
O começo do mundo
Entender a cerimônia do ieipari significa entender como o mundo dos Arara começou. Para eles, como a geografia da Amazônia mostra, com seus rios caudalosos e terra nem sempre firme, o mundo é composto de pedaços da casca do céu, que quebrou depois de um conflito original -algo parecido com o drama cristão da expulsão de Adão e Eva do Paraíso, e de outros desastres posteriores que outras culturas também têm, como o dilúvio.
A harmonia desse céu Arara foi quebrada pela guerra. A divindade costumava colocar a termo os conflitos usando uma flauta sagrada, mas mesmo os seus trinados não impediram a luta. Essa mesma flauta, com penas de arara, é usada pelos Arara em cada fase do ritual em torno do tronco ieipari.
Apesar da óbvia relação, não se tem certeza do porquê de os Arara terem esse nome. É provável que tenha sido obra dos colonos portugueses, pois a autodenominação desses índios é uma palavra distinta. Curiosamente, no mito de origem essas aves também comparecem, junto com outras que catam os pedaços do Universo caído e o reformam. Já a divindade se transformou em uma onça negra.
A pintura corporal dos Arara lembra as pintas das onças. É uma pintura de guerra. O padrão estético da pintura no corpo segue as mesmas linhas de esquartejamento de um inimigo.
Briga no céu
A briga no céu foi entre dois grupos que se tratavam mutuamente por ipari (ieipari quer dizer ipari de madeira). Ambos caíram na terra em consequência.
Significativamente, outras tribos indígenas não merecem essa designação. Inimigos como os Caiapó são, para os Arara, seres maléficos que têm apenas a aparência de humanos.
E, ainda mais curiosamente, os "brancos" tinham uma identificação melhor. Para os Arara, eles seriam descendentes de um dos ipari, por isso eram respeitados.
O conflito com os "brancos" teve uma base material clara, a invasão das terras Arara, e uma confusão. Havia brancos que, apesar de descendentes de um dos ipari, eram seres maléficos.
Os "brancos" da Funai podiam dar presentes como facões e panelas; já os "brancos" colonos davam tiros de espingarda.
Mas também houve um aspecto perturbador na cosmovisão desses índios. Como o pessoal da Funai incluía índios de outras tribos, potenciais ou reais inimigas, os brancos passaram a ser associados com elas.
A estratégia das frentes de aproximação também era polêmica. Como os Arara foram de repente descobertos ao longo de uma Transamazônica que viria a receber colonos em massa, era fundamental para a Funai achá-los e pacificá-los.
E, por isso, em vez de esperar contatos tranquilos, os funcionários da agência do governo se embrenhavam na mata, praticamente "caçando" os índios, que se viram acuados, vítimas não apenas de um inimigo tradicional, mas de um castigo divino.
Foi isso que criou a crise de 1975 a 1978, que resultou na morte ritual de quatro "brancos". Só a partir de 79, com uma mudança na estratégia de contato, obra do sertanista e ex-presidente da Funai Sidney Possuelo, que a atração dos Arara foi feita de modo correto, sem pressa e sem ameaças.
O ritual do Ieipari é para os Arara uma forma simbólica de tornar a violência, que está na origem do mundo, em algo produtivo, como se fosse uma domesticação desse princípio.
É por isso que, talvez mais importante que o crânio sobre o tronco, é a presença um balde de bebida aos seus pés.
Os Arara tomam essa bebida, feita de mandioca, durante o ritual, ao mesmo tempo falando que estão "tomando um filho de ieipari". Ou seja, para eles é através do líquido que a vida circula no Universo. Ele é literalmente uma das substâncias vitais.
É por isso também que nessa cerimônia as mulheres também costumam roçar a vulva no tronco.
"A cabeça é a expressão simbólica da necessidade de predar o mundo", diz Teixeira-Pinto.
O mito do ieipari, e todo o ritual, expressam simbolicamente a circulação de substâncias vitais no Universo.

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