São Paulo, domingo, 2 de fevereiro de 1997
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A escrita sem trégua

MAURICIO STYCER
DA REPORTAGEM LOCAL

Uma semana antes de morrer, o escritor e jornalista Antonio Callado se recordou do trecho que havia utilizado como epígrafe do romance "Bar Don Juan" (1971), seu relato sobre os anos em que a chamada "esquerda festiva" se divertia no bar Antonio's, no Rio.
Trata-se de uma citação a uma obra do poeta inglês W. H. Auden (1907-1973): "Quando o processo histórico se interrompe... quando a necessidade se associa ao horror e a liberdade ao tédio, a hora é boa para se abrir um bar".
"A idéia era essa: para dar um jeito no Brasil, só mesmo abrindo um bar", disse Callado aos repórteres da Folha que o entrevistaram no último dia 21. "E o bar funcionou até agora, como vocês estão vendo", completou, irônico.
Talvez por não acreditar totalmente nas palavras de Auden, Callado nunca parou de escrever. Para ele, toda hora era boa para escrever. "Bar Don Juan", inclusive, foi publicado dois anos após o escritor ter tido os seus direitos políticos cassados pelo regime militar.
Ao se despedir dos jornalistas, Callado disse: "Muito obrigado. Estava aqui meio jogado fora... Estou doido para acabar essa fase chata e, na próxima semana, retomar as minhas atividades".
Callado queria voltar a escrever as crônicas que vinha publicando aos sábados na Ilustrada desde 1992, mas estava sem forças, devido ao câncer. Por sugestão de sua mulher, a jornalista Ana Arruda, chegou a tentar ditar um texto, mas não conseguiu chegar ao fim.
O escritor também não conseguiu dar forma final ao que seria o seu último romance. Disse que o texto não estava "suficientemente articulado". "Se estivesse, eu teria pena. Mas não estava", disse.
A editora Francisco Alves promete mandar às livrarias até o final de março dois livros de Callado.
O primeiro, "Crônicas do Final do Milênio", traz uma seleção de 66 textos publicados pelo escritor nos últimos quatro anos na Folha.
"Reflexos do Baile", o segundo livro prometido pela Francisco Alves, é um relançamento especial. Trata-se do romance publicado em 1976, tendo como pano de fundo os sequestros de diplomatas ocorridos anos antes no Brasil.
Na sua última entrevista à Folha, visivelmente deprimido e abalado pela doença, Callado fez um balanço exageradamente severo de sua obra e elegeu "Reflexos do Baile" como o mais importante dos nove romances que escreveu -o único que "tem força em si".
Em relação às edições anteriores, esta nova edição de "Reflexos do Baile" trará uma novidade: a publicação, no final do livro, de "O Baile das Trevas e das Águas", o importante ensaio dedicado ao romance pelo crítico e professor de teoria literária Davi Arrigucci Jr.
Neste que é o seu mais bem feito romance, na opinião de Arrigucci, Callado supera positivamente o desafio de "construir um romance histórico capaz de apreender nossa particularidade de forma profunda e concreta".
Nesta edição do Mais!, Arrigucci analisa a importância de uma obra menos conhecida de Callado, a reportagem que ele realizou em 1952 (e que foi publicada no livro "Esqueleto na Lagoa Verde"), sobre o suposto sumiço do coronel inglês Percy Fawcett no Brasil.
O Mais! também publica aquele que foi, possivelmente, o último texto de fôlego de Callado, o discurso que proferiu ao tomar posse na Academia Brasileira de Letras, em 12 de julho de 1994.
"Eu gosto muito do discurso. Não saiu em lugar nenhum. Engraçado... Gosto da homenagem que presto a Tiradentes. Acho uma bela peça. Gostei muito de fazer", disse na última entrevista.

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