São Paulo, domingo, 2 de fevereiro de 1997
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Um nobre nas barricadas

MOACYR SCLIAR
ESPECIAL PARA A FOLHA

Morando em Porto Alegre, eu só conhecia Antonio Callado por fotos. Mesmo à distância, era grande minha admiração por uma figura que, para minha geração, era quase lendária. Tomei conhecimento de sua obra (começando, como muitos, por "Quarup", de 1967) à época do movimento militar. Escrever era então um legítimo ato de resistência, algo que os leitores mais jovens hoje têm dificuldade de entender. A ameaça da censura -quando não da prisão e da tortura- estava constantemente presente no cotidiano dos intelectuais. Callado estava na linha de frente na luta contra a ditadura. Obras como "Bar Don Juan" (1971) e "Reflexos do Baile" (1976) faziam parte do equipamento de sobrevivência na selva da opressão, junto com a poesia de Ferreira Gullar, a música de Chico Buarque, o teatro de Millôr, o humor do "Pasquim".
Mas havia uma diferença entre a literatura de Callado e outras manifestações de protesto. Mesmo pertencente à estirpe dos escritores engajados, a sua literatura nada tinha de panfletária. Ao contrário, era contida e elegante. Mergulhava na exploração da condição humana, o que também não era comum entre os escritores, que, presos a uma causa, buscavam na estereotipia dos personagens a fórmula para mostrar a luta entre esquerda e direita (ou entre o bem e o mal, entre ricos e pobres).
Quando conheci pessoalmente Callado me dei conta de que o estilo de sua literatura era também o estilo do homem. Nosso encontro ocorreu na Alemanha, para onde tínhamos sido convidados, junto com Antonio Torres e Silviano Santiago. Percorreríamos várias cidades, mas começamos nos reunindo na aristocrática Bad Homburg, perto de Frankfurt. Nesta antiga estação de águas, frequentada no passado pela nobreza germânica, mora Ray-Güde Mertin, doutora em literatura, agente literária de vários escritores brasileiros e, mais que isto, uma incansável divulgadora da cultura de nosso país. Ray-Güde tinha, com extraordinário esforço, organizado todo o programa de visitas. Mais que isto, hospedou-nos em sua confortável casa. Ali passei momentos de agradável convívio com Callado e com Ana Arruda, a talentosa jornalista que é sua companheira de sempre (companheira era um termo que os velhos comunistas usavam e que merece ser reabilitado. Refere-se a uma união mais profunda do que o casamento comum, porque feita de emoções e ao mesmo tempo de idéias).
Era suficiente estar perto de Callado e Ana para dar-se conta dos invisíveis laços que os uniam. Juntos, eles criavam uma cálida atmosfera -tão cálida quanto a da aquecida casa- na qual nos víamos envolvidos. Conversávamos muito. Já não lembro sobre o quê -vários anos se passaram desde então-, mas lembro perfeitamente dos dois juntos, caminhando pelas ruas de braços dados.
Quase um sussurro
O que mais me impressionou em Callado foi a elegância com que se vestia, a elegância de seu bigode e costeletas, a elegância de sua postura, a elegância com que falava, sempre num tom baixo, quase um sussurro. A imagem que imediatamente me ocorreu foi a de um gentleman, uma imagem que se reforçou quando soube que ele tinha passado alguns anos na Inglaterra (trabalhou de 1941 a 1945 na BBC). Mas era, ao mesmo tempo, uma imagem paradoxal. Pode um homem de esquerda ser um gentleman ao estilo inglês?
Pode. Eu não vou lembrar aqui Bertrand Russell, que era de família nobre, mas participou em várias demonstrações no auge da Guerra Fria; afinal ele era considerado um excêntrico. Mas a altivez do gentleman, o seu refinamento, a sua sensibilidade podem resultar em profunda revolta diante de injustas estruturas sociais. Arthur Koestler, que escreveu muita bobagem, mas era um ficcionista arguto, criou, em "Ladrões na Noite", um personagem que se torna revolucionário exatamente porque, sendo de condição aristocrática, odeia a miséria. Se os pobres fossem como aqueles seres angelicais que Dickens descreve, diz ele, não haveria por que terminar com a pobreza. Mas os pobres são sujos e brutais, bebem e batem nas mulheres -é por isso que preciso livrá-los da miséria. Exatamente porque não tem os preconceitos burgueses, o aristocrata pode se colocar nas barricadas ao lado dos oprimidos.
Canibais e pulgas
Não foram poucos os intelectuais brasileiros que, pessoas sofisticadas embora, optaram pela militância política. A sofisticação de Callado está presente em cada texto que ele escreveu para a Folha e que a gente lê com delícia. Tais textos correspondem inteiramente à denominação criada por Montaigne (não é por nada que o grande francês figura no título de um dos livros de Callado, "A Expedição Montaigne"): ensaio. Modesto, este nobre que se refugiou em seu castelo optando pelo ascético prazer do intelecto, não via em sua obra mais do que uma honesta tentativa ("Leitor, este é um livro de boa fé") de chegar à verdade. Por trás desta aparência simples, contudo, esconde-se um vasto conhecimento e uma não menor sabedoria. Falando de canibais ou de pulgas, do medo ou da moda, Montaigne se revela um profundo conhecedor da natureza humana.
Como Montaigne, Callado era homem de enorme cultura (será preciso lembrar que foi redator-chefe da Enciclopédia Barsa?). Como Montaigne, ele era capaz de abordar, com elegante precisão, uma variedade de temas, era capaz de citar uma variedade de autores. Mas não perde de vista, contudo, o cotidiano de nosso país.
Tomemos como exemplo uma de suas últimas crônicas (Folha, 7/12/1996) sobre um obscuro romance de Julio Verne chamado "La Jangada". É a história de um fazendeiro peruano que, tendo de ir a Belém do Pará, manda derrubar uma floresta e constrói com a madeira uma gigantesca embarcação, com uma casa, senzala, lojas. Analisando a idéia, Callado fala de H.G. Wells e Luiz da Câmara Cascudo, de Edgard Allan Poe e Rachel de Queiroz, de Pero Vaz de Caminha e Werner Herzog. O recado principal, porém, não tem a ver com a imagem da jangada na literatura. No livro de Verne, Callado vê uma "perturbadora metáfora", mais do que aplicável ao "Brasil escravocrata, tentando ignorar as próprias forças da natureza, simbolizadas na Amazônia". Não por coincidência, a crônica anterior (23/11/96) abordava, com o mesmo profundo conhecimento de causa, a questão agrária no Brasil. Havia ali uma advertência quanto à questão da terra, uma advertência feita com sobriedade, com contenção, mas nem por isto menos eloquente.
Sobriedade, contenção. Enquanto escrevo, a televisão mostra cenas do julgamento de Guilherme de Pádua e de seus passados depoimentos. Cenas de teatral falsidade e que lembram -o crime aconteceu na mesma época- cenas igualmente teatrais e falsas, aquelas que marcaram a derrocada final do governo Collor. A lição ficou: cidadania é também dignidade e elegância. Antonio Carlos Callado ajudou a devolver ao Brasil a dignidade -e a elegância.

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