São Paulo, domingo, 2 de fevereiro de 1997
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O sumiço de Fawcett

DAVI ARRIGUCCI JR.
ESPECIAL PARA A FOLHA

Em janeiro de 1952, Antonio Callado esteve no Xingu, integrando uma expedição formada pelos Diários Associados para acompanhar Brian Fawcett, filho do explorador inglês Coronel Percy H. Fawcett, desaparecido naquela região em 1925. Em 1951, depois de muita insistência dos brancos, os índios Calapalo haviam acabado por contar um crime remoto, revelando a Orlando Villas Boas o local onde teriam enterrado alguém que podia ter sido o explorador assassinado, acompanhado do filho Jack e de um amigo deste, Raleigh Rimell.
Em 1952, a expedição voltava ao local para ouvir o que tinham contado os índios com graça infantil e nenhuma culpa: tintim por tintim e alguma fantasia a mais, repetiram como haviam feito e o fim que deram a cada um de um modo distinto. Muito solícitos, os Calapalo acompanharam então o novo grupo expedicionário, esfalfado na comprida caminhada pelo mato por mais de 12 quilômetros (mais a volta inconcebível), até a reencenação do crime e do sepultamento, às margens de uma sinistra lagoa à beira do rio Culuene, formador do Xingu.
Em 1953, Callado publica o relato desses acontecimentos no "Esqueleto na Lagoa Verde".
Segundo se havia apurado ao tempo da expedição, os ossos de fato achados não eram de Fawcett e dos companheiros que, na década de 20, ali teriam estado em busca de uma fabulosa Cidade Abandonada. Descoberta, ao que tudo indica, por um bandeirante em 1753, no interior da Bahia, ela fora mencionada num documento do tempo, bem traduzido para o inglês pela mulher do não menos fabuloso Richard Francis Burton, na segunda metade do século 19. Daí, quem sabe, notícias da cidade perdida no sertão terem saído de páginas esquecidas da Biblioteca Nacional para correr mundo. Fawcett, suposto descobridor de antigas inscrições e interessado em tesouros escondidos desde menino em Torquay, na Inglaterra, teria tido acesso ao relato, antes de embrenhar-se pela primeira vez no sertão brasileiro em 1909, a serviço do governo boliviano. O fato enterrou-o literalmente na mata; o sonho levou-o ao sumiço.
Em 1928, o explorador americano George Miller Dyott procurou refazer os passos do desaparecido e parece ter descoberto o suficiente para que se imaginasse o que lhe acontecera: se não a morte do coronel perto do Culuene, pelo menos sua passagem pela região. Na expedição de 52, Brian Fawcett, conforme sua cabeça dura e o bom humor de Callado, descartou, porém, os achados do americano: julgava que o pai jamais chegara aos afluentes do Xingu, durante sua segunda viagem ao Brasil, devendo ter desaparecido perto do rio Manitsauá, muito longe do Culuene. Fundava seu ponto de vista numa última mensagem de Fawcett sobre sua posição geográfica, se bem o coronel pudesse torcer informações para evitar desagradáveis concorrentes no seu sonho de novas descobertas e expansão, ao menos imaginária, do Império Britânico. A hipótese foi, no entanto, considerada problemática por sertanistas experientes que avaliaram a andança do inglês por aqueles sertões.
Dyott, por sua vez, teve a sorte de encontrar no Posto Simões Lopes o índio Bernardino, que acompanhou Fawcett como guia. Soube dele que o coronel não subira o Paranatinga, em busca do Manitsauá, de onde pretendia dirigir-se miraculosamente para a cidade perdida da Bahia, mas descera o Curisevo, afluente do Culuene. Dyott continuou seguindo a pista aberta pelo guia despedido do coronel e acabou descobrindo sinais de sua passagem pela tribo dos Anauquá ou Nafuquá: Aloique, filho do cacique, trazia no pescoço, entre outros balangandãs, uma plaquinha oval na qual se lia o nome da firma londrina que suprira Fawcett de material para a viagem; dentro da maloca do índio pôde ver uma maleta de metal idêntica às usadas pelos oficiais britânicos no Oriente, onde servira o coronel quando moço. Aloique falou ainda nos três exploradores, atribuindo a morte deles aos índios Suiá.
Um pouco mais adiante, Dyott encontrou também um dos polvarinhos do coronel e sempre acompanhado por Aloique, de quem já desconfiava, foi conduzido até os Calapalo, em cuja aldeia o "ingueresi" teria dormido uma noite antes de seguir para o Culuene e a morte. Os Calapalo tendiam então a pôr a culpa do crime nos Nafuquá, que, como foi dito, incriminavam os Suiá...
Desfeito o enredo, em 1951, com a confissão dos Calapalo e a confirmação do local à beira do Culuene, os ossos, infelizmente, não coincidem com o tamanho dos ingleses, furando a verossimilhança da narrativa, registrada pelo jornalista de corpo presente no pretenso lugar do crime.
Este resumo, que pretendia ser fiel ao relato, está longe, porém, de poder dar conta da riqueza de dados e do intrincado labirinto que aí se conta. "Esqueleto na Lagoa Verde" não é apenas uma das melhores reportagens já escritas no Brasil, mas uma espécie de desconstrução da reportagem tradicional, minada pela fratura da escrita irônica com que faz e desfaz hipóteses sobre ossos falsos.
Nela ocorre, com efeito, uma pulverização da perspectiva narrativa única, espatifada pela multiplicação dos narradores e de sua visada sobre os fatos: "pão ou pães é questão de opiniães", como diria por essa época Riobaldo. Embora se integrem à perspectiva geral do jornalista, as diferentes variantes se dobram em direção a afluentes muito diversos e são acatadas por um extraordinário senso do relativo, que as contrabalança a cada passo ao encaixar cada relato, traduzindo-se esse relativismo em aguçada e constante ironia na consideração de tudo quanto se narra. O espaço se torna ele próprio labiríntico como o mato inextricável, os múltiplos caminhos e descaminhos do sertão, as águas emendadas, de forma que os rios e afluentes, ramificando-se nesse meio, diversificam também as hipóteses sobre o acontecido.
A própria inocência dos índios, tão impenetrável quanto a mata que os rodeia, trava a busca do que se passou, desdobrando o desconcerto de quem os vê pela primeira vez em sua nudez paradisíaca e termina por não saber como lidar com eles: se trancafiando-os na selva, se reduzindo-os à civilização. Por fim, o entrechoque entre os vários relatos, que se fazem e se desfazem à nossa vista, acaba por confluir no discurso irônico que os entretece para nossa perplexidade e a de quem os assume. Por tudo isso, a reportagem põe a descoberto, de forma irônica e abismada, o fundo de ficção com que topa o jornalista quando se cerne aos fatos até o limite de seu esgarçamento em conjeturas, em hipóteses contraditórias, em apostas vacilantes sobre o real.
É provável que o sumiço do coronel Fawcett tenha levado Callado à busca direta da ficção. Mais tarde, insinua-se no mais fundo de sua obra de ficcionista, em cuja visão retorna continuamente essa experiência dos limites, que reaproxima história e natureza, o civilizado e o selvagem, num rodopio desconcertante em torno de um centro que se evapora. É comum que ele junte a pesquisa historiográfica à forma da investigação policial e tudo num mesmo desconcerto frente ao que não se alcança saber de todo. O incrível desaparecimento de Fawcett é também a evaporação do eixo central da reportagem em torno do fato verificável.
A busca da verdade factual do jornalista é, assim, sutilmente deslocada pela descoberta perplexa da força da ficção que vem do que se imagina, com outro tipo de verdade, não menos esquiva, sobretudo depois da desconfiança quanto à verossimilhança que pode trair a realidade por uma mera coerência interna da narrativa. Callado não adotou a perplexidade moderna sobre os impasses da narração, mas sempre de olho na história contemporânea e em especial na de seu país, se arriscou nos meandros e dificuldades de como contá-la junto ao que imagina. O seu realismo crítico avança desconfiado de si mesmo e acaba deixando-se infiltrar por brechas que o desconcertam no meio do mato, aonde é levado a repensar os descaminhos de nossa já velha civilização litorânea. Aí, nesse centro isolado, pode se deparar com imagens medonhas, como a do terrível formigueiro -"o maior panelão de saúva"- por onde somem, em "Quarup", as esperanças últimas do encontro do centro geográfico e do verdadeiro coração do Brasil. Na intersecção de natureza e história, sua prosa de ficção buscará imagens que, com força alegórica, espelhem a inabarcável totalidade.
Desde esse início, porém, o escritor se empenha em ver cumprido o real destino político do País, que se arma e se desarma, e acaba dando sempre com esse furo em que tudo misteriosamente se perde. Assim o começo é o fim, e se forma desde o "Esqueleto" o mito abstrato e central que perseguirá, recontando-o reencarnado em várias histórias, quebradas pela consciência irônica. O país não dá certo, e a narrativa acompanha esse percurso malogrado com o olhar do desconcerto e uma refeita confiança mítica.
Retornando tantas vezes ao fundo do mato, ela parece redescobrir no despojamento e na simplicidade da vida selvagem a possibilidade de começar outra vez. O ritual do "quarup", já referido na reportagem, refaz o mito da criação, expondo ao sol os bonecos de pau dos quais os índios crêem poder extrair o espírito dos mortos que irá reencarnar na nova aldeia. À perspectiva mítica da contínua renovação se casa a ironia da interpretação histórico-política que, no caso, vê a catástrofe a partir do espírito inglês de Fawcett como legítimo representante da ideologia do Império Britânico, na raiz de muitas das invenções da civilização moderna que tanto dependeu da Inglaterra para se expandir. Assim se alegoriza o extravio do explorador inglês, fazendo repensar o destino do país, a partir de uma aventura singular e errante no meio da selva, e reconsiderar o crime dos índios como um verdadeiro crime da civilização, como um desvio que estava antes e além, na história.
A verdade não anda na moda em nenhuma das suas formas já há muito tempo, mas a de Callado, a partir daí, ficou mais difícil e pediu muito mais folga para se mostrar por entre o mato cerrado dos fatos. O sumiço de Fawcett deve ter-lhe dado a matriz de sua obra ficcional posterior. Sua obra de romancista vinha de antes, da "Assunção de Salviano", é certo, e tinha demonstrado pendores para a intriga policial, com a complicação do enredo, como se vê em "A Madona de Cedro". Mas, embora história, política e crime já se juntassem como problema da construção ficcional, ainda se achava aí muito na superfície da descoberta de uma matéria mais rica e complexa. Ela desponta precisamente nesta reportagem, sob o despiste da escrita fina, clara e discreta. É bem possível que seu olhar tenha aprendido devagar e com a sabedoria de Machado de Assis a detectar a monstruosidade latente sob a capa da neutralidade, a exemplo do escravocrata célebre do "Memorial de Aires" (como no monstro selvagem sob a "sempreviva"), que tanto lhe valeu, além dos temas, para a elegante serenidade de sua prosa.

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