São Paulo, domingo, 2 de fevereiro de 1997
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

A conjuração acadêmica

ANTONIO CALLADO

Nessa espécie de grande pátio que une o delicado Petit Trianon, onde nos encontramos neste momento, e o maciço bloco de concreto do Centro Cultural da Academia, o qual já tem o nome de Austregésilo de Athayde, sopra sempre um vento forte. É o vento da entrada da barra, da entrada, pelo mar, no velho Rio de Janeiro. Este vento fustigava, até 1922, data de seu desmonte, o morro do Castelo, que ficava bem atrás de nós e atrás da igrejinha de Santa Luzia, que ainda está ali, olhando o mar.
Pois bem, anos antes de ser demolido, o morro do Castelo abrigava, entre outras casas humildes, a de uma adivinha, de nome Bárbara, conhecida como "a cabocla". O Rio, o Brasil, como se sabe, apesar de católico desde a primeira missa que aqui se rezou no ano de 1500, sempre manteve um culto lateral, meio disfarçado, a divindades e poderes menos ortodoxos. Tanto assim que o mais profundo conhecedor que já houve do nosso povo -e dizendo isto fica claro que me refiro ao nosso fundador, acadêmico Machado de Assis- põe na primeira página do seu penúltimo romance, "Esaú e Jacó", duas finas senhoras da sociedade carioca, Natividade e sua irmã Perpétua, subindo o morro do Castelo para consultar a cabocla.
É claro que o assunto era sério, pois do contrário Natividade não deixaria o luxo e a calma de sua casa de Botafogo para escalar aquele morro, que podia ter tido muita importância histórica, mas se transformara em valhacouto de desocupados. O assunto era simplesmente que Natividade tinha tido gêmeos e queria descobrir, mediante a clarividência da cabocla, que destino viriam a ter. Qual seria o destino reservado a Pedro e Paulo? E Natividade, ao chegar, entregou à cabocla aquilo que a consulta exigia: retratos dos dois gêmeos, madeixas do cabelo de cada um.
Na cena da adivinhação Machado não nos deixa saber, como era seu costume, até que ponto ele criou com Bárbara uma pitonisa rústica, mas de certa profundeza, ou sinceridade, ou se apenas a apresenta tal como vista por Natividade, que, se acha que Bárbara possui dons sobrenaturais, poderá até, quem sabe, esperar que ela tenha prestígio para criar um bom futuro para os meninos. O fato é que vemos Bárbara fumar, mirar firme os retratos, apertar os cachos de cabelos, respirar fundo e finalmente fazer a pergunta que inquieta Natividade: Pedro e Paulo teriam brigado antes de nascer, ainda no ventre dela?
Tinham, responde Natividade, lembrando pontadas, dores, insônia. Mas que queria isto dizer? E, vendo a cabocla meio agitada, transtornada, implora: "Diga. Posso ouvir tudo". Mas Bárbara, já livre do transe em que estivera mergulhada, sorri, feliz, anunciando "cousas futuras!". Natividade insiste, quer ouvir mais, quer saber se os meninos serão felizes, e a vidente diz que sim, que vão não apenas crescer, vão ser grande e, sobretudo, hão "de subir, subir, subir... Brigam no ventre de sua mãe, que tem? Cá fora também se briga. Seus filhos serão gloriosos. É só o que lhe digo. Quanto à qualidade da glória, cousas futuras!".
O crítico, poeta e acadêmico Augusto Meyer, em um de seus pioneiros estudos sobre Machado de Assis, chamou-o de o bruxo do Cosme Velho. Isto não me autoriza a afirmar que Machado previu, no capítulo inicial de "Esaú e Jacó", a derrubada do morro do Castelo, a construção pelos franceses deste Petit Trianon, a vinda para cá da Academia, a ampliação da Academia, por Austregésilo de Athayde, Centro Cultural afora. Mas peço vênia para lembrar que houve, em tudo isso, a intervenção de outro bruxo, também morador do Cosme Velho, o dito Austregésilo de Athayde. Aos críticos difíceis, que disserem que há coincidências demais, muito forçadas, no enredo deste meu romance, peço que reparem que o Petit Trianon e o Centro Cultural são gêmeos tão diferentes do ponto de vista da arquitetura quanto Pedro e Paulo do ponto de vista do temperamento e que, no entanto, cresceram para coisas grandes, ficaram gloriosos, cintilantes de fardões e povoados de senhoras elegantes, em noites de posse de acadêmico.
Pedro e Paulo, na verdade, ficaram gloriosos, sobretudo, como criações de Machado de Assis. Criação dele é também esta sólida Academia, que hoje generosamente me recebe e que foi fundada em 1897. É pouco mais jovem que a República do Brasil. Não tem sofrido, porém, os abalos e aflições da república, que apesar de haver passado por tantas revoluções não conseguiu chegar à nossa estabilidade acadêmica. Durante a minha vida, que de um ponto de vista histórico não é afinal de contas tão antiga assim, já atravessei várias repúblicas.
Nasci -o que, para parodiar Rubem Braga, foi uma precipitação- em 1917. Eram ainda os tempos da Primeira República, a qual foi derrubada quando eu era menino, em 1930, e passou a ser conhecida como República Velha, também chamada República dos Carcomidos. Vivi, a partir de então, alguns anos numa República dos Tenentes, que em 1937 desembocou na entidade denominada Estado Novo. Estive anos fora, em Londres e Paris, transmitindo notícias do mundo para o Brasil, e quando retornei, em 1947, havíamos entrado em um período que se classificou como Democracia e que se prolongou até 1964, quando entramos no chamado Regime Militar, que o vulgo denominou Ditadura. Deu lugar à República em que agora vivemos e que ainda carece de nome de pia, confirmado.
Enquanto isso, a Academia crescia tranquila. E, como descobri numa quinta-feira recente, depois do chá e durante a reunião de rotina, esta sólida instituição, preocupada com seu destino e com a guarda da língua e da cultura do país, nem sabe ainda que nome é o seu. Na reunião de outro dia, como neófilo e catecúmeno, já efeito, mas sem direito a palpite ou muito menos voto, vi e ouvi, com agradável assombro, que até hoje a Academia não sabe se se chama Academia Brasileira, simplesmente, ou Academia Brasileira de Letras. E não parece de todo preocupada, tanto assim que, depois de se cruzarem opiniões e até ironias acerca do assunto, nada ficou resolvido, absolutamente nada. Ou, para ser mais exato, o último dos acadêmicos a se manifestar foi a acadêmica Rachel de Queiroz, que sugeriu que devíamos continuar exatamente como até agora, usando, segundo a inclinação de cada um, o nome de Academia Brasileira ou de Academia Brasileira de Letras.
Até chegarmos a esse remanso, a esta nossa tranquila Academia à beira da Guanabara, o Brasil empreendeu várias outras experiências acadêmicas, a princípio na Bahia, sede do governo colonial. Como escreve José Veríssimo -acadêmico- em sua "História da Literatura Brasileira", "...havia academias no Brasil ainda antes do século 18. (...) Mas como associações literárias e regularmente organizadas datam de 1724. Foi nesta época criada a primeira, a Academia Brasileira dos Esquecidos. Para em tudo imitar as da metrópole (...) fundava-se conforme aquelas, com a proteção real, sob os auspícios do vice-rei, ou antes estabelecida por ele em seu próprio palácio". O historiador Rocha Pita, citado por Veríssimo, diz que era indispensável a fundação de uma academia como a dos Esquecidos, sobretudo na Bahia, que "na produção de engenhosos filhos, pode competir com Itália e Grécia". Fundou-se ainda na Bahia a Academia dos Renascidos, em 1759. O Rio de Janeiro entrou cedo na competição. Mesmo antes de se mudar a capital para o Rio, em 1763, tivemos aqui, em 1736, a Academia dos Felizes, e em 1752 a dos Seletos.
Eis aqui como José Veríssimo registra na história do Brasil esses primeiros vagidos acadêmicos: "...tiveram as academias literárias no Brasil uma existência transitória e inglória. Mas não de todo inútil e sem efeito nessa cultura e na literatura que a devia representar. Apesar da origem oficial e de serem um arremedo, havia porventura nelas um sentido de emulação com a metrópole e portanto um primeiro e leve sintoma do espírito local de independência. Acaso a denominação da primeira, de Academia Brasileira dos Esquecidos, revê o despeito dos seus fundadores contra o esquecimento dos letrados coloniais na formação das academias portuguesas anteriores. O propósito, que não só essa, mas a dos Renascidos e dos Felizes declaradamente tiveram, de estudar sob seus diversos aspectos o Brasil e sua história, traduz evidentemente um íntimo sentimento de apego à terra, com a intenção, ainda certamente pouco consciente, da parte que no seu desenvolvimento devia caber aos seus letrados".
Essa observação de Veríssimo, sossegada, mas profunda, me serve de atalho certeiro ao patrono desta minha cadeira, o poeta Cláudio Manuel da Costa, que se filiou em 1759 à Academia Brasileira dos Renascidos, segundo documento descoberto em 1911 nos arquivos portugueses. Reincidente, Cláudio fundaria mais tarde, em Minas, outra academia, a Arcádia Romana, ou Ultramarina, que vai acabar na tragédia da Inconfidência Mineira. Ninguém terá retratado melhor que meu predecessor, Austregésilo de Athayde, a beatífica paz em que viviam os poetas da Vila Rica: "As inocentes paisagens bucólicas em que pastores imaginários, vestidos de peles, tangiam rebanhos ao som da rude frauta, as florestas povoadas de semideuses homéricos, as sutis aparições dos habitantes das árvores, dos ares e das águas, todo o mundo que sucumbira com a morte do Grande Pan, revivia nas montanhas mineiras. Vinham de tão longe, do fundo dos milênios, no ritmo dos alexandrinos de Glauceste Satúrnio e do amorável Dirceu".
Glauceste Satúrnio, esclareço, era o apelido de Cláudio, e Dirceu, naturalmente, o de Tomás Antonio Gonzaga, na referida Academia Romana, ou Ultramarina, que haviam fundado. É claro que não entraram os dois na Conjuração Mineira apenas por desfastio e para descansar da poesia. Eram sensíveis às idéias do tempo e aos anseios de independência.

Continua à pág. 5-7

Texto Anterior: O sumiço de Fawcett
Próximo Texto: O redescobrimento do Brasil
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.