São Paulo, quarta-feira, 12 de fevereiro de 1997
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Os sem-trabalho

PAUL SINGER

Neste momento em que o desemprego maciço torna-se a chaga social do país, o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra aparece, pelo menos até onde alcança o meu conhecimento, como sendo a única organização que efetivamente o combate.
Há muitas entidades que se preocupam com os desempregados, que denunciam a injustiça de que são vítimas. Mas só o movimento dos sem-terra organiza milhares de famílias, reúne-as em acampamentos junto a glebas improdutivas, promove ocupações, provoca reações, algumas sangrentas, evidencia o drama dos marginalizados e obtém resultados.
O governo federal quer fazer crer que, se não fossem as ocupações de fazendas e prédios públicos, ele faria a reforma agrária numa boa. Acredite se quiser...
O que surpreende é que o exemplo dos sem-terra ainda não tenha dado frutos. Não me refiro a outros movimentos por reforma agrária, mas à organização e mobilização dos sem-trabalho, que querem e precisam de uma ocupação produtiva na cidade mesmo.
Um movimento dos sem-trabalho não teria o que ocupar, pois não sobram empresas deixadas ao léu, mas ele poderia lançar as bases de uma economia urbana correspondente aos assentamentos que o MST vem implantando nas zonas rurais.
A principal conquista dos sem-terra não é a desapropriação da terra e sua entrega às famílias. É a construção de cooperativas de produção em cada assentamento, que se viabilizam enquanto empreendimentos produtivos coletivos, demonstrando que solidariedade e ajuda mútua são princípios econômicos que funcionam.
Os sem-trabalho das cidades teriam como vanguarda os que há até pouco tinham emprego e o perderam em consequência da automação, da globalização ou da recessão. Mas a estes se somaria, sem dificuldade, uma massa maior dos que nunca tiveram emprego com carteira assinada e há muito tempo dependem de trabalhos precários e mal pagos para sobreviver.
Hoje estão todos no mesmo barco. Uma parte dos postos de trabalho sumiu definitivamente, devorada por robôs, importações baratas ou encolhimento do mercado. Outra parte foi precarizada: as empresas preferem contratar trabalho "temporário", sem garantias.
Portanto, são muitos os que carecem de trabalho permanente e seguro. O que se oferece a eles é a ilusão de que, se se qualificarem, terão emprego novamente. Na melhor das hipóteses, conseguirão tomar o trabalho de algum outro trabalhador, provavelmente na condição de "por conta própria". Na pior, disputarão uma nesga de algum dos poucos mercados, já saturados, em que microprodutores têm vez.
Os sem-trabalho podem, no entanto, se reintegrar à vida produtiva (e à cidadania) se conseguirem se unir, formando uma massa crítica suficiente para criar demanda efetiva que viabilize formas variadas de produção.
Quando mais um vendedor de sanduíche se junta aos que já se aglomeram no portão da fábrica, ele amplia a oferta sem expandir a demanda. Se ele toma fregueses de outros, o seu gasto amplia a demanda, mas os que perderam fregueses provavelmente diminuirão sua despesa e tudo fica no mesmo.
Mas se, digamos, algumas dezenas de milhares começarem ao mesmo tempo a produzir e vender de tudo -de brinquedos a serviços de reparação, de comida congelada a aulas de inglês- e mediante crédito recíproco ou uma moeda especialmente criada para esse fim(*) começarem a comprar uns dos outros, então haverá um aumento sensível de oferta e de demanda ao mesmo tempo, e muitos dos novos empreendimentos terão chance de dar certo.
O movimento dos sem-trabalho tem mais possibilidades de êxito até que o dos sem-terra, pois não precisa se limitar à produção agrícola. Precisa de capital, mas em proporções iniciais modestas.
Diversos bancos públicos têm fundos para tais fins, e até recursos do Fundo de Amparo ao Trabalhador poderiam ser obtidos. Tudo o que falta é unir e organizar os sem-trabalho, abrir-lhes a perspectiva de auto-organização produtiva e deixar que a dinâmica da solidariedade e ajuda mútua dê frutos.
Para tomar essa iniciativa, os sindicatos de trabalhadores têm todas as condições e interesse. Se um movimento dos sem-trabalho conseguir tirar parte dos desempregados das ruas, recupera-se também o poder de barganha dos que continuam empregados.
(*) Há exemplos concretos de moedas comunitárias que viabilizam empreendimentos que só podem vingar se a sua entrada no mercado coincidir com um aumento da demanda. Sua emissão equivale a uma abertura de crédito que os novos produtores se fazem uns aos outros, mas com uma garantia coletiva de que todos acabarão sendo honrados.

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