São Paulo, quarta-feira, 12 de fevereiro de 1997
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O macuco do Planalto

SEBASTIÃO NERY

O saudoso senador e ministro paulista Severo Gomes estava caçando macuco, no fim-de-semana, em sua fazenda perto de Parati.
Macuco se caça piando, para chamar. Severo estava piando mato adentro quando chegou um assessor muito puxa-saco: "Dr. Severo, o senhor pia macuco melhor do que muito macuco".
(O presidente Fernando Henrique está fazendo coisas no governo que os militares, nos mais turvos dias da ditadura, jamais imaginaram fazer. Fernando Henrique pia mais macuco do que qualquer macuco.)
Nem Hitler fez isso. Stálin também não. Mussolini, Franco, Salazar, os piores ditadores deste século cometeram crimes bárbaros contra seus povos. Mas nenhum deles destruiu a legislação social de seus países.
Quando o presidente assumiu, disse que a Era Vargas tinha acabado. Pensamos todos que fosse mais um arroto de vaidade e presunção. E era um programa de governo. Ele anunciava que a era social da Era Vargas ia acabar. Ele comunicava que ia tentar implodir a legislação social que as lutas do povo brasileiro construíram neste século.
A legislação social é um patrimônio nacional. Germinou em batalhas seculares. Desde a Inconfidência, em todas as duras rebeliões do Brasil-Colônia, do Brasil-Império, da Primeira República, ela estava lá, começando, já pulsando, como reivindicação e bandeira.
A legislação social não nasceu em 30, com Vargas. Ampliou-se, formalizou-se, consolidou-se com ele. Não é "uma criação da ditadura de Vargas", como dizem os emplumados elitistas tucanos. Foi plantada bem antes, nos túmulos dos nossos mártires. Regada com o sangue dos escravos. Adubada nas lutas operárias do começo do século, dos imigrantes anarquistas italianos em São Paulo. E definitivamente conquistada na organização e na experiência sindical de hoje.
Agora, Fernando Henrique põe como símbolo de seu governo o desmantelamento da legislação trabalhista. Cada projeto é um crime:
1) OIT - a Organização Internacional do Trabalho surgiu em 1919, depois da Primeira Guerra, gêmea da Liga das Nações. Uma, para a paz entre os povos. A outra, para a justiça social dos povos.
O Brasil já assinou numerosas convenções com a OIT, inclusive a 158, que dificulta a demissão do empregado sem justa razão. O governo quer rasgar a assinatura para permitir demissão por "justa razão", quando o patrão alegar "motivos econômicos" ou "necessidades do processo tecnológico".
Todos conhecemos como age a maioria dos empregadores brasileiros. Só cumpre a lei quando obrigada. "Motivo econômico" e "processo tecnológico" abrangem tudo. Qualquer demissão será "justa causa" (é o pistoleiro procurando razões para matar. Até nenhuma serve.)
2) Justiça do Trabalho - o governo criou um pelotão de fuzilamento social chamado Conselho de Reforma do Estado, presidido (logo por quem!) pelo bedel da Febraban, Mailson da Nóbrega. Eles preparam uma medida provisória que é a proposta mais brutal já apresentada por um governo no Brasil: o empregado demitido que assinar a demissão fica proibido de recorrer à Justiça do Trabalho.
É a fábula do lobo e do cordeiro aplicada no governo "sociológico" de Fernando Henrique. O empregado precisa do dinheiro da demissão para sobreviver enquanto não arranjar outro emprego. Se o que o patrão lhe oferecer para demitir tornar-se definitivo, porque ele precisou assinar o recibo, acabou-se a indenização justa. E acabou a Justiça do Trabalho.
A Justiça do Trabalho existe exatamente para isso: para conferir se estão certas as contas de patrão e empregado. Para ver se o lobo não está devorando o cordeiro. Essa proposta é um abominável e criminoso terrorismo social. Não sei como é que Fernando Henrique e o ministro Paulo Paiva conseguiriam fazer a barba depois de assiná-la.
3) juiz classista - o fim da representação de empresários e empregados na Justiça do Trabalho é o terceiro desses malditos mandamentos anti-sociais que o governo, cumprindo agachado as ordens do sistema financeiro internacional, está querendo impor ao país.
A representação classista é a única presença legal dos trabalhadores no exercício da justiça social. Querem tirá-los até da Justiça do Trabalho, para deixarem sozinhos os juízes de carreira, nas sentenças e nos tribunais. Imaginam que é mais fácil dobrar, aliciar (ou corromper) um do que três.
O povo brasileiro não vai aguentar o pio desse macuco.

Sebastião Augusto Nery, 63, jornalista, é diretor do jornal "Sete Dias" e colaborador do "Jornal de Brasília" e da "Tribuna de Imprensa", entre outros. Foi deputado federal pelo PDT-RJ (1982-86).

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