São Paulo, terça-feira, 25 de fevereiro de 1997
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O primeiro passo

ANDRÉ LARA RESENDE

O assunto é chato. Trata-se do escândalo dos títulos públicos. Há algum tempo venho resistindo a acompanhar o caso. Passo por cima do noticiário, evito até a leitura cruzada para não correr o risco de ser obrigado a acompanhar mais um episódio nessa deprimente procissão de escândalos. Na semana passada, ao correr o controle remoto pelos canais de televisão, deparei-me com a TV Senado. Confesso que não sabia nem da sua existência. Mas assisti hipnotizado a uma sessão da CPI.
Em sessão anterior, um ex-vendedor de cosméticos, dono de uma empresa de factoring, que nos tempos áureos chegara a ter um office-boy, admitiu ter auferido lucros de centenas de milhões de reais. Alegou ter usado o dinheiro para pagar dívida de jogo e confessou nunca ter pago um tostão de imposto de renda. Pressionado pelos senadores, Ibrahim Borges Filho não resistiu: aos prantos aceitou contar a verdade em sessão secreta oportunamente sugerida por José Serra.
Dois dos mais articulados senadores, José Serra e Esperidião Amin, se revezaram no interrogatório ao coordenador da dívida pública da Prefeitura de São Paulo. Estavam munidos de bem documentada evidência fornecida pelo Banco Central e tinham, com toda certeza, feito o dever de casa. Enfrentavam um adversário patético que, ainda assim, conseguiu sustentar-se melhor do que o endividado vendedor de cosméticos. Ajudou-o a sua extraordinária cara-de-pau, mas foi, sobretudo, a complexidade do assunto que o impediu de desmoronar.
Os jornais estão repletos de roteiros e diagramas que procuram explicar a falcatrua. O princípio é simples: os títulos públicos são emitidos conforme autoriza a Constituição para pagar sentenças judiciais. Há suspeitas de irregularidades desde a emissão dos títulos, mas deixe-se isto de lado para compreender a essência do esquema de corrupção. Tais títulos não têm valor claro de mercado. Os Estados e os municípios estão em péssima situação financeira. Simplesmente não têm crédito na praça. Não há compradores sérios para os seus títulos.
Os títulos são então vendidos com descontos para pequenas instituições financeiras que os revendem com grandes lucros, conforme o previamente acordado, para alguma instituição financeira ou fundo de pensão ligado ao próprio Estado. Os títulos são apenas o instrumento utilizado para provocar o prejuízo no Estado e suas instituições financeiras. Vende-se barato numa ponta e recompra-se caro na outra. Apenas isto. Poderiam ser bananas, mas são títulos públicos onde os preços de mercado não são claros, não há exigência de concorrências e assim por diante.
Para disfarçar minimamente a maracutaia, os títulos são negociados várias vezes numa cadeia de instituições financeiras antes de serem recomprados a preços muito mais altos pelo próprio Estado ou por uma de suas instituições. O lucro realizado no percurso é desviado através de prejuízos ou pagamentos fictícios até chegar aos bolsos de seus novos donos. Completa-se o ciclo: dos contribuintes para os corruptos.
Poderia-se evitá-lo? Melhor fiscalização é sempre bem-vinda, mas a imaginação e a sofisticação dos esquemas de corrupção evoluem quase sempre mais rápido do que a fiscalização. O primeiro passo é algo que já deveríamos ter adotado há tempos, o fim das instituições financeiras públicas.

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