São Paulo, quinta-feira, 6 de março de 1997
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Trilha comenta contradições com ironia

FLÁVIA CESARINO COSTA
ESPECIAL PARA A FOLHA

São Paulo, 1997. 16 milhões de habitantes, mais de 150 kms de congestionamentos na hora do rush. Horas a mais na volta do trabalho, se chover muito.
Dois dias de fila para conseguir vaga na escola. É melhor não precisar do PAS. 57 homicídios no fim-de-semana. Nas ruas convivem passantes, funcionários e uma horda de desempregados que vivem do comércio ambulante ou da caridade de quem se arrisca a não subir os vidros no sinal fechado.
Policiais escondem mendigos e crianças que só têm crack. Automóveis envenenam o inverno. Sair da cidade no fim-de-semana pode não ser relaxante quando todos têm a mesma idéia.
São Paulo, 1929. 1 milhão de habitantes. A cidade tem ritmo de metrópole, impulsionada pela força do café. Traz as promessas da industrialização e o fascínio pela modernidade.
Para uma cidade que apagou sua própria história à medida em que foi crescendo e que tem tanta dificuldade de preservar o pouco que sobrou, a exibição "Symphonia da Metrópole" é um raro acontecimento. Não só porque documenta pedaços desaparecidos da cidade, mas também porque retrata uma inocência que não existe mais.
Como outros da década de 20, esse filme procura documentar o cotidiano da metrópole com os métodos de Dziga Vertov. Traz para as imagens captadas, montadas com inventivos efeitos de fusões e trucagens, além de enquadramentos inesperados, a vida que pulsa na cidade.
Mas os diretores adicionam a essa composição visual duas séries de letreiros. Uma primeira narra as atividades urbanas de um ponto de vista mais convencional. Outro grupo de letreiros utiliza grafismos da escrita à mão e faz comentários poéticos.
Dualidade que se desdobra em outras. Há sequências que parecem tiradas de cinejornais. Outras são peças de vanguarda.
As contradições da cidade ficam visíveis na estrutura do filme, que mistura suas descrições ufanistas do progresso às imagens surrealistas da desorganização trazida pelo crescimento.
Depois das mudanças trazidas nesses 60 anos, não podemos assistir ingenuamente a essas imagens, daí a importância fundamental da trilha sonora que é performatizada nas apresentações do filme. A massa sonora que acompanha o fluxo das imagens não se furta a comentar ironicamente todas essas contradições, às vezes acompanhando, outras vezes afastando-se da proposta ufanista do filme.
Mas característica do trabalho sonoro é manter uma espécie de ironia afetiva em relação a uma precariedade e uma ingenuidade dos anos 20, que hoje a cidade não tem mais. É a "demolição musical" feita por Livio Tragtemberg e Wilson Sukorski que faz imperdíveis essas apresentações de "Symphonia da Metrópole", porque trabalha musicalmente o descompasso e o diálogo possível, necessariamente crítico, entre a São Paulo de 1929 e a São Paulo de hoje.

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