São Paulo, domingo, 9 de março de 1997
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Indesejável restrição a investimentos estrangeiros

LOURIVAL J. DOS SANTOS

A Constituição de 88 proíbe investimentos externos em empresas jornalísticas e de radiodifusão.
A justificativa do constituinte para a restrição deve ter sido a proteção do interesse coletivo contra a disseminação de idéias e doutrinas alienígenas, eventualmente nocivas à garantia da estabilidade do grupo social, ou o temor de que a soberania nacional e o exercício da cidadania corram perigo se não mantivermos os investimentos estrangeiros longe dos cofres dessas empresas, assim como os próprios estrangeiros distanciados do comando e da orientação intelectual das mesmas.
As restrições são arcaicas e prejudiciais. Neste momento da história, o intercâmbio de informações é universal (a exemplo das navegações via Internet), e a abertura de possibilidades de captação de recursos, vital à expansão de quaisquer empreendimentos, frente à exigência de renovação constante ditada pelo mercado mundial. É inadmissível, no Brasil de hoje, a manutenção de regra que dificulte ou mesmo inviabilize tais atividades.
Até porque, para se evitar a gestão estrangeira, não é preciso impor restrições aos investimentos, bastando estabelecer que a direção intelectual da empresa seja exercida por brasileiros natos ou naturalizados. E que o estrangeiro somente possa participar como sócio, desde que não seja majoritário, tal como ocorre nas sociedades de televisão em circuito fechado. Assim estarão satisfeitas até as convicções mais puristas.
Ademais, o conceito de cidadania é amplo, e o de soberania, enquanto considerado o conjunto de vontades do corpo social, é sólido o suficiente para não ser abalado pela natureza dos investimentos em determinados negócios.
Tudo o que se disser em contrário será discurso de efeito, que, além de não refletir a realidade, estará contribuindo para a condenação das empresas jornalísticas e de radiodifusão a desigualdade injustificável em relação às outras atividades desenvolvidas no país, o que fere o princípio da isonomia.
Sobre a retórica comumente utilizada em favor da manutenção das restrições contra o imaginado risco da perda da liberdade, Líbero Badaró ponderou, há mais de um século e meio, que a sociedade deverá estar sempre atenta contra aqueles que se utilizam da liberdade para acabar com a liberdade.
E ao falar em liberdade de expressão, que sempre incomodou o poder ao longo da história, e que, em razão disso, contou com grandes obstáculos no seu avanço, principalmente durante os regimes absolutistas, não se está cogitando apenas da liberdade jornalística, mas da mais ampla manifestação da capacidade humana de comunicar experiências, difundir idéias e informações, que são expressões fundamentais das criações do espírito e fazem do homem -segundo Reale- o único animal capaz de inovar dentro do processo dos fenômenos naturais.
Por força dessa singular capacidade de construir o mundo idealizado sobre tudo o que lhe é dado pela natureza é que são criadas situações desfavoráveis a todos aqueles a quem não interessa desnudar as diferenças socioculturais e econômicas, dentro das sociedades que governam.
Quem duvida que, ao obrigar Galileu a abjurar publicamente suas corretíssimas convicções científicas sobre o heliocentrismo do sistema solar, a Igreja, então detentora do poder, não se estava manifestando contra o que sabia ser lógico?
Porém justificou sua postura atribuindo àqueles que expressassem pensamentos e obras conflitantes com a sua filosofia a pecha de hereges, e a história registrou os célebres julgamentos de Torquemada.
Os tempos estão mudando. As vidas públicas, principalmente das Américas, passam por alterações de peso, com a substituição de ditadura por democracias, não havendo mais lugar para isolamentos retrógrados, tampouco para reservas de mercado ou monopólios injustificáveis.
Floresce a era da cultura universal. O mundo, pelo avanço das técnicas de comunicação, encurtou distâncias, e o relacionamento entre povos tornou-se planetário, com a utilização de satélites e vias eletrônicas avançadas.
Os países desconsideraram os limites de suas fronteiras para formar blocos concisos, com objetivos voltados à interligação e parcerias mercadológicas, expondo-se mais e, com isso, proporcionando o nivelamento das desigualdades.
O Brasil, como consequência desta fantástica metamorfose, participa com destaque no desenvolvimento do Mercosul, o qual aponta com auspício para o cenário do novo milênio.
A imprensa mundial caminha a passos largos para a declaração da sua total liberdade, e a prova disso é a recente Declaração de Chapultepec entre a Unesco e dezenas de associações de igual importância de vários países, tendo como lema ignorar as fronteiras com vistas à instalação de imprensa livre, como condição fundamental para que as sociedades resolvam seus conflitos, promovam o bem-estar e protejam a sua liberdade.
Neste momento, qualquer restrição aos meios de comunicação representa ranço de um passado esquecível. A chance de desenvolvimento tecnológico das empresas jornalísticas e de radiodifusão, pela abertura da possibilidade de captação de recursos sem limitação de qualquer natureza, somente incentivará o progresso e fortalecerá a verdadeira soberania nacional e o real conceito de cidadania.
Pois a liberdade de expressão é o alicerce sobre o qual se assentam as bases da democracia e do Estado de Direito, ainda que isto eventualmente possa incomodar alguns seguidores do prior de Segóvia. Deverá ser dada a palavra ao Legislativo.

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