São Paulo, domingo, 9 de março de 1997
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Hoje

Fulniôs atacam, apertam inimigo, mas são batidos

MÁRIO MAGALHÃES
DO ENVIADO A ÁGUAS BELAS (PE)

A partida se arrasta na segunda etapa, e o tempo regulamentar já se esgotou há 14 minutos. O árbitro, um branco de bermudas, jeans e tênis, ajuda a equipe fulniô do Juventude, que perde por 2 a 1 e pressiona o Central, de Caruaru (PE).
O técnico do Central, o ex-jogador Bezerra, se desespera: "Acaba com esse jogo, pô. Assim não dá."
A torcida fulniô o vaia. "Cala a boca que o jogo está bom", diz um índio. "Aqui a partida só termina quando o sol se põe", fala outro.
Não se trata de um embate qualquer. Pela primeira vez, em 25 anos, a aldeia recebe um time profissional, ou quase.
Tradicional clube pernambucano, o Central enviou os aspirantes, com maioria de juniores e uns poucos profissionais.
A preparação começou de manhã, no estádio Padre Alfredo Damas, ex-vigário da aldeia tido como amigo dos índios.
O "estádio" não tem grama nenhuma nem arquibancada. Os torcedores ficam de pé, sentam na terra ou em cadeiras que trazem.
Antes do almoço, alguns jogadores se dedicam à limpeza do local e à marcação da cancha com cal.
Os que não estão na limpeza passam de casa em casa, vendendo os ingressos, a R$ 1. O Central cobrou R$ 600 de cota, e será difícil alcançar essa arrecadação.
O time de Caruaru chega, almoça e vai descansar na igreja. Antes da preleção, recebe uma ordem do treinador: não olhar para as índias, evitando mal-entendidos.
O programa vespertino de domingo atrai a tribo fanática por futebol -pelo menos mil pessoas, quase 25% da população fulniô, vão ao campo.
Também há brancos em Águas Belas. "Não adianta discutir: futebol bom aqui é só o dos índios", diz um deles.
O público garante o pagamento da cota, apesar de muitos fulniôs, sem dinheiro, entrarem de graça, e outros entrarem por locais do estádio onde não existe muro.
Na preliminar, a equipe reserva do Juventude goleia. Depois, dois jogadores tiram a camisa, a enrolam na mão e viram bandeirinhas da partida principal.
O jogo começa, e os torcedores fulniôs ficam a pouco mais de um metro do goleiro visitante, mas nunca lhe dizem palavrão, só provocações quase pueris para os padrões nacionais.
O início é desastroso para a tribo: o Central faz 2 a 0. O Juventude ataca muito, parece ter nascido para isso, mas a defesa é frágil. Os fulniôs dominam, mas não marcam.
No intervalo, enquanto Bezerra conversa com sua equipe, o técnico do Juventude, Iramilton, bate papo com amigos e é imitado pelo time. Cada jogador conversa com outros fulniôs, em rodinhas, trocando impressões sobre a partida.
No Juventude, como em todos os times da aldeia, branco não tem lugar -só os índios jogam.
No segundo tempo, o atacante Boió, da equipe da casa, dribla, passa, desequilibra e é caçado em campo. Quando dribla demais, e ele é bom nisso, a torcida se irrita.
Aos 29min, o Juventude diminui e, apesar de vento forte contrário, encurrala o Central.
Aos 60min do segundo tempo, o árbitro termina a partida e torcedores aplaudem, apesar da derrota por 2 a 1. Alguns atletas fumam xanduca (o cachimbo tradicional da tribo), outros bebem cachaça.
O cacique convida o time do Central a ir a sua casa. Não há motivos para recusa: em toda a partida, os fulniôs não deram pontapé nem carrinho. Parecem ignorar as chamadas "jogadas duras".
O pajé, exigente, sai insatisfeito, reclamando do técnico: "É ele quem escala, mas se não gosto posso mudar, porque o time é domínio meu."

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