São Paulo, domingo, 9 de março de 1997
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A polícia puritana

GILBERTO DIMENSTEIN
DE NOVA YORK

Numa elegante vingança, o jornalista David Shaw, ganhador do Prêmio Pulitzer, lançou, ano passado, um irreverente livro ridicularizando a imprensa americana, acusando-a de participar de um complô contra o prazer.
Refinado apreciador da comida, bebida, sexo e um bom charuto, David Shaw, crítico de mídia do "Los Angeles Times", estava se sentindo pessoalmente atacado com tantas reportagens alarmistas sobre os perigos do prazer. É como se o transformassem num marginal por gostar de comida com gosto -ou seja, gordura e sal.
"A imprensa vende a sensação de que tudo o que comemos hoje e provoca satisfação é ou pode ser cancerígeno", afirma Shaw.
A revolta íntima resultou em "Polícia do Prazer", uma investigação sobre manipulações, falsificações e equívocos por trás de reportagens e artigos sobre sexo, comida ou bebida. "Há um clima de histeria", constata.
Ele apontou, por exemplo, como laboratórios e cientistas enganam jornalistas, vendendo como definitivas descobertas ainda parciais para chamar a atenção do público. Colheu depoimentos de cientistas revelando que muitos colegas precisam de espaço na imprensa para atrair patrocínio para pesquisas.
Mostra um elenco de alimentos condenados por descobertas científicas, mas, tempos depois, liberados por falta de provas, num vaivém que desnorteia os leitores.
Os jornais, segundo ele, estariam servindo de instrumento da onda puritana que une, nos EUA, religiosos, políticos e feministas. A Aids estimulou visões medievais sobre sexo, trazendo campanhas pela virgindade; as feministas estabeleceram códigos de conduta sobre molestamento sexual que criminalizou a sedução.
"O problema do puritanismo é que ele teme que alguém, em qualquer parte do mundo, esteja sentindo prazer", afirma Shaw, bem-humorado.
O livro "Polícia do Prazer" (editora Doubleday) é mais uma, entre tantas, agulhadas na imprensa americana, cercada de críticas por todos os lados. "O cerco nunca foi tão grande", afirma David Klintel, um dos diretores da Faculdade de Jornalismo da Universidade de Columbia, em Nova York.
Tornou-se frequente saírem livros de experientes jornalistas, respeitados nas redações, com pesadas críticas.
"A imprensa estimula o cinismo. E quanto mais cínico o país se torna, menos as pessoas se interessam pela vida pública e, portanto, menos lêem jornais", afirma um dos críticos, James Fallows, autor de livro defendendo a tese de que a imprensa mina a democracia americana, ao se mostrar destrutiva, idolatrar a catástrofe e o escândalo. Agora, ele dirige a revista "USNews & World Report".
O cerco é estimulado porque, segundo as pesquisas de opinião, a maioria dos ouvintes, telespectadores ou leitores desconfia da imprensa. Essa desconfiança é apontada como um dos fatores que geram a queda de audiência dos telejornais ou circulação dos jornais.
O bombardeamento crítico é patrocinado -e muito bem patrocinado. Empresários, fundações ou simples cidadãos dão dinheiro para centros de fiscalização da imprensa. Um dos mais tradicionais é o Fairness & Accuracy in Reporting (Fair), que, como o nome em inglês diz, investiga a correção e precisão das notícias.
Baseado em Nova York, o Fair (justo, em inglês) tem um ideário mais à esquerda, atento às discriminações contra minorias, especialmente mulheres. O orçamento anual do Fair é US$ 800 mil. Uma equipe de profissionais investiga -e divulga com alarde por meio dos jornais, rádio e televisão. Num de seus ataques, detalhou 20 razões para não se acreditar nos editoriais do "The Wall Street Journal", mais importante jornal de economia do mundo, exibindo uma coletânea de contradições.
À direita, um dos mais importantes centros de acompanhamento da imprensa é o Media Research Center, com um orçamento de US$ 4 milhões. Eles se mostram atentos sobre como os jornais, com suas redações sempre mais à esquerda, produziam matérias parciais, deturpadas, contra políticos ou idéias conservadoras.
"As redações prestam atenção nas críticas dos centros que as fiscalizam. Até porque são elaboradas, muitas vezes, por competentes profissionais", afirma Lynell Hancock, ex-editora da revista "Newsweek" e, hoje, professora de jornalismo em Columbia.
Os ataques da sociedade são favorecidos porque, ao contrário do Brasil, os jornalistas não tiveram a imagem de resistência às ditaduras -o que deu uma pitada de heroísmo à profissão. Atacar a imprensa nas sociedades latino-americanas foi, em geral, prática dos generais; daí a tendência em se confundir fiscalização com tortura.
Por não existir essa pitada de heroísmo, o poder judiciário americano -outra fonte de controle- dá com frequência ganhos de causa milionárias às vítimas de eventuais erros jornalísticos. Ninguém acusa o Judiciário de estar contra a liberdade de imprensa, mas apenas resguardando direitos individuais, princípio que embasou a formação dos Estados Unidos.
Conhecedor da sociedade americana, Paulo Francis sabia que o processo contra ele movido por diretores da Petrobrás na Justiça americana era muito mais sério do que se levado no Brasil. Ficou tão nervoso e tenso que alguns de seus amigos atribuem o ataque cardíaco ao processo.
O alvo preferencial da investigação são as cadeias de televisão -e mais um foco de desconfiança da opinião pública diante da imprensa. Os mais importantes transmissores de notícias pela TV, com ramificações em jornais e revistas, caíram nas mãos de conglomerados econômicos.
General Eletric comprou a NBC; Time Warner, que edita a revista "Time", CNN; Walt Disney, ABC; Westinghouse, CBS. Estão sob permanente suspeita de veicularem informações favoráveis a seus acionistas e não aos leitores.
Essa suspeita abalou um dos ícones do jornalismo mundial de televisão, o programa "60 minutos". Eles deixaram de transmitir reportagem sobre a indústria do cigarro. Foram e são acusados de serem influenciados por um dos acionistas da Westinghouse com interesses comerciais na indústria tabagista.

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