São Paulo, domingo, 9 de março de 1997
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À sombra das pirâmides

CARLOS HEITOR CONY

Rio de Janeiro - Nunca tive nada contra os camelos, mas a recíproca parece que não é verdadeira. Dez anos atrás, em Jerusalém, um deles comeu a lente grande-angular da minha Pentax e eu perdi a oportunidade de fotografar um beduíno com radinho de pilha contra a desolada paisagem do deserto da Judéia.
Daria uma excelente foto de abertura (página dupla) para uma reportagem encomendada.
Tempos depois, no Cairo, dei um vexame diante de 4.000 anos de história condensados nas pirâmides. Um camelo cismou comigo e ficou andando atrás de mim. De início, fingi que não estava entendendo. Mas ele tanto insistiu em me fuçar que acabei perdendo a paciência e os bons modos.
Na inutilidade de xingar o camelo, xinguei o cameleiro em todos os idiomas que mal conheço. O cara pensou que eu queria dar uma volta montado no animal e aí foram os dois -camelo e cameleiro- que não me largaram. Terminei dando uma gorjeta ao homem para que fossem embora.
Não é agradável olhar de perto esse animal estúpido e solerte. Seus dentes são esverdeados, o hálito é deplorável. Durante séculos, ele vence a imensidão das areias com as suas gorduras acumuladas nas corcovas de sebo.
Ia xingá-lo uma última vez quando descobri que aquele era um camelo cego, de pupilas vazias e gastas pelos ventos do deserto. Daí a humilhação em que agora vivia, passando os dias rodando em torno das pirâmides, explorado por cameleiros excitados, levando no lombo turistas cevados e ignorantes como eu.
Posso esquecer tudo na vida, graças e desgraças, mulheres que amei e que talvez tenham me amado. Mas não esquecerei aquele animal estúpido e cego que passou a manhã se oferecendo ao freguês que não o alugou, que procurou um dono que não o quis e encontrou um amigo que não o compreendeu.

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