São Paulo, domingo, 9 de março de 1997
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O ponto cego do ensino público

ALFREDO BOSI

Talvez pouca gente ainda se lembre, mas 96 foi o Ano da Educação. De minha parte, reavivei a memória repensando uma pesquisa que empreendi há um ano sobre o tema "Educação: as Pessoas e as Coisas".
O trabalho procurava pôr o dedo na chaga do nosso ensino primário. O mal de base não era a falta de vagas e, menos ainda, a escassez de salas de aula. A quase totalidade das crianças em idade escolar tinha e tem acesso ao 1º grau. Tampouco o ínfimo rendimento do ensino deveria ser atribuído a problemas de saúde dos alunos de baixa renda ou à "carência cultural" das suas famílias, como por algum tempo se propalou. Fatores semelhantes já se constatavam aos anos 40 e 50, quando, porém, as professoras primárias, as saudosas normalistas, obtinham resultados sensivelmente melhores que os atuais.
Descartadas as falsas pistas, resta a realidade nua e crua: a reprovação em massa nos anos iniciais, a evasão nos últimos, e o funil que se estreita brutalmente na passagem do 1º ao 2º ciclo.
Está na hora de encarar a questão crucial e tocar o centro nervoso do sistema do qual depende a regeneração das suas células. Esse centro é a situação real do nosso mestre-escola.
Uma simples vista d'olhos na tabela nacional dos salários dos professores primários acende uma luz no labirinto do fracasso escolar brasileiro. Tanto a sociedade civil quanto o Estado agem como se ignorassem este fato cotidiano, mas espantoso: o nosso professor primário é remunerado como se fosse um operário não-qualificado.
Tive o cuidado de comparar os vencimentos de docentes da rede oficial em vários Estados. O professor de 1º grau, aquele a quem se delega a missão de ensinar a ler, escrever e contar, ganhava, em média, R$ 2 por aula nas províncias mais bem aquinhoadas.
Façamos as contas, o que é sempre mais honesto do que fazer de conta que tudo vai bem. Para receber cinco salários mínimos, este bóia-fria do giz e da lousa teria, em fevereiro de 96, de cumprir a façanha de trabalhar entre 10 e 12 horas por dia. Refiz as contas agora, supondo que as coisas tivessem mudado razoavelmente depois do Ano da Educação. Com base nos dados da Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação, eis o que se apura como valores referentes ao início de carreira.
No Amazonas, o salário do professor primário, somado às "remunerações", importa em R$ 147 para um total de 80 aulas semanais, o que dá cerca de R$ 1,84 por aula. Vejamos o Nordeste. No Ceará, onde o governo tucano anda fazendo uma "revolução" no ensino básico, professor com magistério ganha R$ 169,96; professor com licenciatura curta, R$ 215,14. Ou seja, respectivamente, R$ 2,11 e R$ 2,68 por aula.
Animado por esses números, desci mais um pouco e conferi as condições da viril Paraíba. Mal pude conter o pasmo: R$ 104 para o magistério; R$ 130 para o portador de curso universitário, isto é, R$ 1,30 e R$ 1,62 por aula. Os pisos são afrontosos, certamente a lei do salário mínimo ainda não chegou lá: R$ 37 e R$ 43 mensais. Supus que fosse caso isolado, mas me enganei. A Paraíba tem dignos pares no Rio Grande do Norte e no Mato Grosso do Sul.
Pernambuco, onde o governo estadual tem notório passado de esquerda, paga R$ 1,75 por aula ao portador de magistério. Na Bahia, ainda não se pagam sequer dois salários mínimos para os primeiros níveis da carreira.
Grimpemos as Alterosas. Minas já foi apontada como exemplo de zelo pedagógico e valorização do mestre. Lá eu esperava flagrar um salto que me consolasse das misérias nordestinas. Mas só encontrei mesquinheza: R$ 255 para o portador de magistério que dê 96 aulas mensais; R$ 2,70 por aula. Para o segundo nível, a sovinice das autoridades concede R$ 0,10 a mais por aula.
Enfim, São Paulo. O Estado mais rico da federação ainda não atingiu o piso de R$ 3: estacou em R$ 2,98. O ensino bandeirante de 1º grau continua enterrado em covas rasas. E o Sul maravilha? Paraná: R$ 2,45 e R$ 3,16 por aula. Santa Catarina: R$ 2,25 e R$ 2,42. Rio Grande do Sul: R$ 2,05 e R$ 2,42.
Como se vê, os Estados mais pobres estacionaram nos seus níveis indigentes: como há um ano, não alcançaram R$ 2 por aula. Os Estados mais desenvolvidos, quando elevaram o seu piso, fizeram-no de modo vil, oscilando entre R$ 2,50 e R$ 3. O arrocho foi a regra. De fato, nenhum salário de professor primário iniciante toca a soleira dos R$ 794,40 que, pela estimativa do Dieese, constituem o mínimo necessário para que viva hoje no limite da decência uma família de quatro pessoas.
O governo federal propôs a criação de um fundo de valorização do magistério que apontava para um piso de R$ 300. A iniciativa era modestíssima, foi aprovada pela Câmara, mas a sua realização acabou sendo adiada sob a pressão de governadores e prefeitos que se valeram do clima de barganha instaurado pelo marketing da reeleição.
Continua, pois, vigorando o primado das coisas sobre as pessoas. Computadores e TVs aos milhares sem professores respeitados e estimulados são sucata virtual. Livros didáticos sem mestres que os leiam e os trabalhem com garra e entusiasmo são pilhas de papéis destinados ao lixo do esquecimento.
Nada há a "reciclar", nada a avaliar enquanto não se eleva a plataforma inicial. Só neste caso será possível atrair para a escola talentos e vocações. As coisas sem as pessoas são letra morta. Preferir coisas a pessoas não é realismo. É equívoco ou conformismo.

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