São Paulo, domingo, 9 de março de 1997
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Mamãe se chama Luiz

DANIEL CASTRO

Dona-de-casa deixa marido e quatro filhos para viver com outra mulher, toma hormônio, cria pêlos e bigode e consegue na Justiça autorização para usar um nome masculino
"Me vejo mais como um protetor deles. Não posso negar que sou mãe. Às vezes a gente brinca, falando que eles têm dois pais"
No último dia 20 de janeiro, o juiz Eduardo Velho Neto, da 6ª Vara Cível de Sorocaba (SP), deu uma sentença inédita: autorizou Maria Tereza de Araújo, 40, mãe de quatro filhos, a mudar seu nome para Luiz Henrique Araújo.
No Brasil, foi a primeira decisão judicial, embora em primeira instância, favorável a um transexual feminino -"mulher que, psiquicamente, tem convicção de que pertence ao sexo oposto, de que nasceu no corpo errado", na definição do psiquiatra Décio Silveira Pinto de Moura, 74, da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas).
Roberta Close, o transexual masculino mais famoso do país, apesar de já ter feito cirurgias de mudança de sexo, até hoje briga na Justiça para alterar seus documentos.
No processo de Sorocaba, o juiz, levando em conta que Luiz Henrique ainda possui todos os órgãos femininos, julgou improcedente o pedido de mudança de sexo. Ou seja: Maria Tereza muda para Luiz Henrique, mas, nos documentos, "ele" continua sendo do sexo feminino.
O promotor do caso, Arnaldo Marinho Martins Jr., considerou a decisão "capenga" e recorreu da sentença, pedindo que Luiz também tenha o direito de assinalar o sexo masculino.
Com o recurso, o processo passou para o Tribunal de Justiça do Estado e a sentença do juiz Velho Neto ainda não pode ser aplicada.
Para chegar à sentença, o juiz se embasou em pareceres de especialistas da Unicamp. A junta foi composta por um geneticista, um endocrinologista, um clínico, um especialista em ultra-som, dois psicólogos e dois psiquiatras (entre eles Décio Silveira Pinto de Moura).
O laudo apresenta Luiz Henrique como um "indivíduo cujos sexos genético (tem os cromossomos XX), genital interno (tem útero), genital externo (tem vagina) e gonodal (tem ovários) são femininos, mas que apresenta clitoromegalia (tem um 'falo' de três centímetros)". E conclui: "Nosso diagnóstico final é transexualismo com orientação masculina".
Graças a hormônios masculinos, desde 1992 Luiz Henrique tem aparência masculina. Os hormônios, segundo a Unicamp, fizeram seu clitóris -que já era avantajado- crescer, formando um "falo" de três centímetros -o normal vai de 0,5 centímetro a, no máximo, 1 centímetro.
Luiz tem barba e bigode ralos, costeletas e é um pouco calvo. Sua barriga, um tanto saliente, é peluda. Conserva algumas características femininas, como a voz (levemente grossa) e as mãos e os pés (bastante delicados).
Vizinhas
A transformação de Luiz Henrique começou há 12 anos, quando ele -então a dona-de-casa Maria Tereza- conheceu Dilza de Jesus Martines, 39, mãe de três filhos, com quem vive até hoje.
Vizinhas, se encontraram pela primeira vez na piscina do condomínio, em São Bernardo do Campo (Grande SP). Casadas e com filhos, ficaram amigas.
Dilza nunca havia experimentado uma relação homossexual, ao contrário de Maria Tereza. Sete meses depois do primeiro encontro, as duas já estavam morando juntas. "Estávamos casadas havia dez anos. Largamos tudo, família, carro, apartamento. Foi difícil. Moramos em favela, passamos fome e tivemos até que dormir em rodoviária", conta Dilza.
Na época, Luiz já tomava hormônios masculinos -e era Dilza quem aplicava as injeções. Em 1990, quando já tinha alguns pêlos no rosto, passou por uma situação no mínimo inusitada.
Seu ex-marido perdeu o emprego e lhe pediu para cuidar dos filhos. Durante um ano, foi "mãe de novo", enquanto Dilza trabalhava em um supermercado para sustentar a família.
Mas, segundo Luiz, seus filhos -hoje com 20, 19, 17 e 15 anos- só foram saber da "verdade" em 1992. "Contei toda a situação e eles compreenderam. Minha filha até me disse: 'Olha, não me importo que você seja Luiz, que seja homem. Para mim, não mudou nada'", afirma Luiz.
Atualmente, Luiz vive com Dilza e duas filhas dela em uma casa na periferia de Sorocaba (87 km de SP). Uma das filhas de Dilza o chama de "pai". Os filhos de Luiz o chamam de Luiz.
"Meus filhos vêm me visitar, me ajudam a carpir o quintal, a consertar a cerca", afirma. "Me vejo mais como um protetor deles. Não posso negar que sou mãe. Às vezes a gente brinca, falando que eles têm dois pais", diz, rindo.
Decepção amorosa
Luiz fala pouco de seus anos de mulher casada. Diz que só se casou por causa da pressão familiar, agravada por uma decepção amorosa.
"Tentei ser o que a sociedade queria que eu fosse. Mas chegou uma hora em que não aguentei. Desde criança eu me sentia menino. Gostava de revólver de brinquedo, de empinar pipa. Gostava de roupas de menino, shorts e calças, mas minha mãe me obrigava a usar vestidos. Eu detestava."
Luiz afirma que sempre sentia atração por meninas e, na adolescência, teve relações com várias delas. "Eu pedia para as pessoas me chamarem de Carlos", lembra.
Aos 16 anos, Luiz se apaixonou por uma garota que frequentava o mesmo curso de música. O romance foi descoberto e virou "um escândalo". Assim, ele se casou com o professor de violão -"que sabia de tudo e sempre me aceitou", frisa.
Hoje, enquanto aguarda o novo julgamento, Luiz sonha com cirurgias para mudar de sexo. Mas não tem dinheiro -cerca de US$ 15 mil- e espera receber ajuda.
No futuro, ele pretende arrumar emprego como caseiro -nunca conseguiu registro em carteira profissional por causa de seu nome feminino- e se casar com Dilza. Se isso ocorrer, na cerimônia irá usar as mesmas abotoaduras de ouro que ornamentaram o terno de casamento de seu avô materno. O nome Luiz Henrique, inclusive, é uma homenagem a esse avô.

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