São Paulo, quinta-feira, 20 de março de 1997
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"Perpétua" se revela cômica e cortante

NELSON DE SÁ
ENVIADO ESPECIAL A CURITIBA

Não mudou o texto, garante o autor. Mas "Perpétua" foi inteiramente outra coisa, no 6º Festival de Teatro de Curitiba.
A peça de Dionisio Neto, com o próprio e Renata Jesion, cumpriu uma temporada no Columbia, ano passado, como um pesadelo urbano, "futurista".
Um encontro entre uma prostituta e um intelectual, obrigados a dividir horas presos dentro de um apartamento, num Estado autoritário.
A atmosfera lembrava "Fim de Jogo", de Beckett. O enredo tinha alguma coisa de "Navalha na Carne", de Plínio Marcos. Ainda ecoa alguma coisa, mas o pesadelo, que mais parecia da montagem do que da peça, se foi.
Não havia humor nas apresentações. O sarcasmo do personagem de Dionisio era agressivo, sobretudo tenso, inconvincente.
Aqui, ele ri de si mesmo, expõe o ridículo e o constrangimento de suas obsessões.
Faz citações e não apenas aparenta entender do que fala como consegue distanciar-se para rir de si mesmo, o que torna mais cortante a apresentação, quando entra pela tragédia.
Não é um "intelectual"-palavra que, aliás, quase desapareceu do texto-, mas um poeta o que Dionisio, de fato, é.
E o confronto de alta e baixa cultura, entre a mentira dele e a verdade dela, que permeia o texto, ganha verossimilhança.
A prostituta cresce com ele. Renata Jesion é emocionante, envolvente, outras vezes engraçada, como estava longe de ser, em São Paulo: quando dança, para ser depois ridicularizada pelo poeta-cliente; quando declama ou canta letras de músicas kitsch; quando mostra paixão e carinho pelo poeta confuso e desesperado.
Antunes
A referência na peça não é os anos 60, como em "Opus Profundum", mas os 70/80, Antunes Filho e Gerald Thomas, no diálogo que o autor mantém com as gerações do teatro. (Por sinal, registre-se que a peça começa ao som de "The End", dos Doors, com o diálogo: "Pai?" "O que é, filho?" "Eu vou matar você.")
Está presente a dança de Shiva, e muito mais das referências indianas de Antunes, além da interpretação interiorizada característica do diretor.
Também está presente o "fonemol", a língua inventada, também de Antunes Filho, mas aqui usada como um recurso de humor, como aliás o diretor jamais conseguiu.
Mas o mais é todo de Dionisio, da poesia sem travas ao prazer com as frases grotescas, da cultura pop ao português castiço, dos seus frágeis e machucados personagens urbanos à multimídia.
Não é bom esquecer, certamente, a tão cuidada e detalhada direção de atores da peça, feita por Leonardo Medeiros -um ator que ajuda a fazer respirar a direção teatral.
Por fim, vale registrar que, na pequena e opressiva sala do Columbia, em São Paulo, "Perpétua" talvez tivesse seu ambiente mais adequado, talvez até óbvio.
Mas foi preciso um palco italiano para que a montagem explodisse de dentro para fora.

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