São Paulo, domingo, 23 de março de 1997
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A herança liberal

CARLOS HEITOR CONY

Rio de Janeiro - Anos atrás, ao fazer a sinopse para uma novela sobre os anos 30 ("Kananga do Japão"), a pesquisadora da minha equipe trouxe-me um recorte de jornal da época (1938) com a descrição de uma cena que a censura da época liberou por achar que o episódio edificaria os cidadãos.
A repressão da ditadura getulista era exercida, basicamente, pela Polícia Especial que o lugar-comum classificava de "famigerada". Equivalia, em esforço e intenção, às SS e SA nazistas, às esquadras fascistas de Mussolini.
Tropa considerada de choque e elite, mais choque que elite -muita gente morreu eletrocutada nos porões da PE. Os rapazes eram notórios pelo quepe vermelho e pelos cassetetes que não eram de borracha, mas de canos de chumbo.
Comandante da famigerada era o capitão Eusébio Queiroz, sujeito truculento, mas muito elegante, sempre bem vestido, ternos bem cortados, chapéu importado, socialmente muito educado. Rosnava-se em todo o Rio que era homossexual. Para os padrões da época e pelo seu visual, parecia realmente um assumido.
Em 1935, depois da revolta comunista, ele torturou pessoalmente os presos com a ajuda de integralistas infiltrados na polícia. Três anos depois, em 1938, foi a vez do assalto integralista ao Guanabara para matar Getúlio. O capitão Eusébio foi também torturar os presos, que o vulgo chamava de "galinhas verdes".
Um deles, ao receber a primeira porrada, não acreditou no que acontecia. Gritou para Eusébio de Queiroz: "Capitão, três anos atrás nós torturamos aqueles comunistas. Como é que agora o senhor me tortura? O senhor traiu seus ideais?".
Possesso, o capitão começou a gritar: "Eu sou um liberal! Eu sou um liberal!". E cada vez que proclamava a sua condição de liberal, aumentava a dose da porrada. Bem, isso foi em 1938, não se falava ainda em neoliberalismo. Mas a história ainda não terminou.

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