São Paulo, segunda-feira, 24 de março de 1997
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Discurso de formatura

JOÃO SAYAD
QUERIDOS ALUNOS E ALUNAS:

O que um professor de 50 anos, da geração dos hippies e dos guerrilheiros, pode falar aos bacharéis de 1996? Será que adianta falar ou existe um silêncio que nunca pode ser quebrado entre as gerações? De qualquer forma, quero aproveitar a oportunidade desta última aula.
Vocês acabam de passar quatro anos estudando intensamente economia, história, matemática e estatística. Jovens e cheios de energia, devem se sentir portadores de novas verdades que estão ansiosos para aplicar, mudar o mundo e construir um futuro melhor.
É sobre isso que quero fazer um alerta. É preciso estar muito atento para que todos esses conhecimentos não os tornem desumanos, isto é, insensíveis aos sofrimentos, perdas e sacrifícios que podem causar. Ainda que sejam esses sacrifícios e perdas para algumas pessoas feitos, supostamente, em nome do interesse público e do país.
Afinal de contas, não se afirma que reformar a Previdência e penalizar os aposentados atuais e futuros é necessário para o crescimento da economia? Vale a pena impor sacrifícios aos inativos de hoje para que as novas gerações, seus filhos e meus netos, vivam em economia mais próspera?
Não existem propostas também para modificar a Consolidação das Leis Trabalhistas para que mais trabalhadores possam ser contratados, ainda que com salários menores, para aumentar o emprego e tornar a economia brasileira mais competitiva?
Afinal de contas, aumentar a taxa de juros e sobrevalorizar o dólar para controlar a demanda podem quebrar muitas empresas brasileiras, mas em compensação acaba com a inflação. Como decidir?
Como definir o que é humano e o que é desumano no mundo cheio de injustiças e que precisa ser mudado?
Enquanto vivermos neste mundo cruel, ser contra a violência pode resultar em inércia, manutenção do status quo injusto e nos tornar exatamente o oposto -desumanos.
A questão é insolúvel. Nesta última aula, não consigo apresentar qualquer conclusão definitiva. Posso apenas dar algumas sugestões.
Futuro Primeiro, tomem cuidado com a idéia de futuro. É sempre em nome do futuro que são permitidas as maiores crueldades -desde o "paredón" das revoluções salvadoras da minha juventude até o desemprego e a exclusão da nossa época de globalização.
Antes de qualquer decisão, faça de conta que o mundo acaba amanhã.
O futuro é sempre muito desconhecido e com soluções melhores do que podemos imaginar hoje. Por mais que vocês estejam convencidos da correção das medidas que querem tomar se, por alguns minutos, vocês refizerem seu raciocínio sob esta hipótese aterradora (que o mundo vai acabar amanhã), vocês abrirão uma oportunidade nas suas cabeças de repensar as decisões e torná-las menos cruéis e mais humanas.
Depois, desconfiem da unanimidade.
Vocês não tiveram a oportunidade da minha geração de ouvir opiniões opostas, de desconfiar. Em economia, a unanimidade é ainda mais grave, já que estamos tratando de interesses e dinheiro que acabam enfeitiçando os mais bem intencionados cientistas, analistas e políticos.
Com a queda do Muro de Berlim e a vitória das idéias atuais, vocês estão em situação semelhante à dos sacerdotes da Igreja Católica no auge da Contra-Reforma, em pleno período da Inquisição. Naquela época, o mundo era a religião; hoje a religião é o mercado.
O mercado e a economia que ocupam espaços cada vez maiores da nossa vida e destroem a diversidade. Ainda que vocês sejam economistas, é preciso se preocupar com a biodiversidade, a diversidade da vida.
O mais eficiente, o mais apto a sobreviver no mercado, acaba se impondo com tanta força, que muita coisa boa, embora ineficiente ou de interesse público, acaba sendo destruída por esta máquina "darwiniana" do capitalismo. E nem sempre os mais aptos são os melhores. O sobrevivente da guerra do Vietnã foi mais apto para sobreviver à guerra do que os outros. Será também o melhor em tempos de paz?
As coisas não-lucrativas, como a escola, a universidade, as artes e a filosofia, não são eficientes nem lucrativas.
É cada vez mais difícil assistir a um bom balé, comer um bom churrasquinho, comprar maria-mole, encontrar um bom alfaiate, visitar uma cidade linda do interior ou do litoral brasileiros que não estejam lotadas de turistas, pescar de vara em cima da ponte, ouvir música caipira que não seja country.
A vida é um milagre de luta contra as forças seletivas e destruidoras do meio ambiente. Hoje, meio ambiente é mercado. E ser humano, amar a vida, significa preservar várias formas de vida, ineptas para sobreviver à força avassaladora do mercado.
Vocês não precisam ficar aflitos. Para economistas brasileiros, o problema de definir o que é humano é mais fácil.
Cada ciclo de crescimento do Brasil -pau-brasil, açúcar, ouro, café, industrialização e, agora, integração competitiva- foi marcado por grandes mudanças, muita prosperidade e aumento da pobreza para grandes parcelas da população. E foram sempre feitos em nume de uma boa intenção -a catequização dos índios, a civilização dos negros e o aumento de renda dos operários.
Nunca como agora, um novo modelo de crescimento apresentou ameaças tão grande para os mais pobres e para os excluídos. Por isso, a definição do que é ser humano, aqui no Brasil, é muito mais fácil: basta desconfiar das promessas que os teóricos do dia fazem sobre o futuro e defender apaixonadamente os mais fracos e os mais pobres.

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