São Paulo, segunda-feira, 24 de março de 1997
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Uma convergência estratégica?

LUIZ A. P. SOUTO MAIOR

Tradicionalmente, a França tem sido uma espécie de "enfant terrible" na coalizão ocidental. Em contraste com alguns dos seus principais parceiros europeus, nunca hesitou em marcar posição própria frente aos EUA, mesmo que de forma incômoda ou, às vezes, desproporcional ao peso específico do país.
Em suma, nenhum governante francês -particularmente os de inspiração gaullista, como Jacques Chirac- tem se permitido esquecer a "grandeur de la France", ainda que, no mundo de hoje, ela possa não parecer tão evidente para os demais...
A recente viagem do presidente francês aos países do Mercosul e à Bolívia, à frente de uma comitiva de 120 pessoas, inscreve-se na mesma linha de atuação. Mas cabe recordar que, nem no passado, nem na recente visita ao nosso continente, o "aplomb" francês tem esquecido o pragmatismo.
Em entrevista à rádio francesa, Chirac, fiel à tradição, combinou os dois. Para ele, os latino-americanos devem estabelecer um "vínculo muito forte" com a Europa, mantendo-se abertos para o mundo, em vez de se tornarem "um pedaço do Nafta". E, referindo-se à próxima reunião hemisférica de Belo Horizonte, afirmou que "a América Latina compreende perfeitamente que não é do seu interesse fechar-se numa integração regional exclusiva".
Mais claro, impossível. Desassombradamente, a França, apoiada no peso econômico da União Européia (UE), contesta os planos de Washington para o continente -que declara nocivos aos interesses latino-americanos- e defende a criação de laços mais fortes entre a Europa e a América Latina.
Até aí, há uma convergência de interesses entre Paris e os países do Mercosul. Por motivos diferentes, tanto o Brasil e seus parceiros de integração sub-regional, quanto a França, compreendem os riscos de uma área hemisférica de livre comércio e vêem as vantagens de novos vínculos Mercosul-UE.
Por isso, os dois agrupamentos firmaram um acordo com vistas à constituição de uma associação inter-regional, de contornos ainda não plenamente definidos. Em suma, o Brasil vê o imperativo estratégico de preservar a diversidade geográfica das suas relações econômicas e políticas; a França, o risco de um mercado em expansão com 200 milhões de habitantes e um PIB de US$ 1 trilhão tornar-se uma espécie de quintal econômico e político de Washington.
Em termos estratégicos, uma aproximação Mercosul-UE surge, pois, tanto para Brasília quanto para Paris, como uma parceira político-econômica altamente desejável, sendo necessária.
Percebeu-a Chirac, ao priorizar o Mercosul e, nele, o Brasil, em sua visita à América Latina; percebeu-a Fernando Henrique Cardoso, ao romper irradiações protocolares para marcar a importância singular que atribuía à visita do mandatário francês.
Diversidade
Resta ver se, nas próximas negociações entre europeus e latino-americanos, a percepção desse grande objetivo estratégico prevalecerá sobre os numerosos interesses setoriais que a ele se opõem.
Ao Brasil e a seus parceiros no Mercosul interessam a diversidade e o equilíbrio das suas relações internacionais. Mas, até o momento, as relações econômicas dos quatro com a UE (recorde-se que, para os países que a integram, a política comercial é comunitária e não nacional) sofrem de problemas -sobretudo, mas não apenas, na área agrícola-, algo semelhante aos que têm com os EUA.
Para que a visão de uma nova parceria Mercosul-UE, impulsionada pelo Brasil e pela França, saia do plano retórico, é preciso que, em futuro relativamente próximo, sejam tomadas medidas capazes de resolver, pelo menos, alguns aspectos significativos de um contencioso econômico vasto e espinhoso.
Isso aliviaria as frustrações atuais e tenderia a confirmar a percepção de que a França se propõe a influenciar a UE na direção de uma efetiva parceria com a América Latina e não no sentido de uma outra relação vertical de dependência -menos viável, mas não menos perigosa, do que uma área de livre comércio hemisférico.
Se tal percepção se confirmar, a viagem de Chirac passará à história das relações inter-regionais; caso contrário, terá sido apenas um exercício brilhante, porém inócuo, de relações públicas...

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