São Paulo, sábado, 29 de março de 1997
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Os anos 60 chegam aos 60 com Zé Celso

NELSON DE SÁ
DA REPORTAGEM LOCAL

José Celso Martinez Corrêa e os anos 60, aos 60. Ou, como falou Lenise Pinheiro, "dizem que você é 60, agora você é mesmo". O aniversário é amanhã, no Oficina.
Ontem de madrugada, o diretor -diretor não, o artista, como insiste Antunes Filho, perguntado sobre Zé Celso- não aguentou ficar deitado, enquanto falavam de teatro na sala.
Levantou-se, bêbado de sono e cansaço, e apareceu com uma idéia para uma leitura dramática de uma de suas peças, "Cacilda", no dia do aniversário do nascimento de Cacilda Becker, no próximo domingo.
Quer que seja no TBC "de Franco Zampari", porque é de Zampari, da profissionalização do teatro brasileiro, que o texto trata. Se não deixarem os atores entrar para a leitura, já imagina uma "invasão". Quer levar Bete Coelho, Júlia Lemmertz e Alexandre Borges.
O artista acorda de vez quando e vê as fotos de Lenise Pinheiro, o painel todo, reproduzido ao lado. A sessão de fotos dois dias antes, ele lembra, deu o sinal para o novo teatro brasileiro.
Óculos
Ele olha o próprio corpo, depois de correr atrás dos óculos, porque não enxerga bem, aos 60, e vê o novo teatro brasileiro.
Um teatro que poderia ser o do avesso, aquele que ele próprio, como ator, anuncia em "Pra Dar um Fim no Juízo de Deus". A peça afirma o físico, o corpo, o homem diante de Deus.
Zé Celso encena com atores se masturbando, defecando, tirando sangue em seringa. E quando o corpo, o homem venceu Deus afinal, entra o ator Zé Celso e, nos passos de Artaud, autor da peça, vira o homem do avesso. Não mais o homem: o seu avesso. E ele dança como as crianças.
É o novo teatro brasileiro que ele vê em si mesmo, aos 60, nas fotos de Lenise Pinheiro. Uma imagem de Kazuo Ohno, magro, dançando, interpretando mitos modernos, Carmem Miranda, Marilyn Monroe.
Ele fala confusamente sobre o que seria o novo teatro. Zé Celso aos 60, como aos 30, vê uma revolução em cada foto, em cada peça, se bobear em cada dia.
Mãos trêmulas
Em "Bacantes", as mãos trêmulas que assustam aos que têm carinho por ele, encena a própria vitória da revolução, a vitória do deus Dionísio, o do teatro, diante daqueles que não aceitam e reprimem o culto.
É com "Bacantes", amanhã no teatro Oficina, que ele faz o rito dos seus 60 anos. Mas não está feliz com a primeira das quatro apresentações de aniversário.
Marcelo Drummond, seu companheiro, que faz Dionísio, ri das broncas ouvidas nos intervalos do espetáculo de quinta. Diz que "o velho" está intratável, e ri à solta.
Está intratável. Insinua grosseiramente que não gostaria que eu escrevesse este texto. Tem talvez na memória a crítica escrita de "Mistérios Gozosos", que o levou, disse e escreveu ele, a chorar.
Não aceita, não entende, não vê sentido na busca de independência do jornalismo. Não acredita em coisas assim; nada disso faz sentido nas revoluções de Zé Celso, o mais radical dos artistas de teatro.
Radicalismo
Radicalismo que vem de longe. Em sua primeira peça, que apresentou no Teatro de Arena, ainda sem existência o Oficina, era já atento mais ao comportamento, às relações pessoais, do que à política, sem perder a mesma de vista. O Arena torceu o nariz, conta.
Com o tempo, reuniu ambas as visões, e outras. A cada peça, pela década que todos olham com inveja, como ele diz, e rancor, ele saltou do teatro realista para o teatro dialético para o teatro de revista, terminando por sintetizar tudo e bater no AI-5.
No meio do caminho, estava no maio de 68, em Paris, quando tentou salvar Jean-Luc Godard da polícia, no meio da batalha, e saiu ferido, sangue escorrendo da cabeça, como relata Ítala Nandi em "Teatro Oficina, Onde a Arte Não Dormia" (Nova Fronteira).
No meio do caminho, viveu e brigou com o Living Theater, como está registrado, não sem ataques ao diretor, no livro que acaba de sair sobre a radical companhia americana.
Mas perdeu Renato Borghi (leia texto abaixo), e o Oficina saiu viajando pelo país mais como seita do que como grupo de teatro, como escreve Décio de Almeida Prado em "O Teatro Brasileiro Moderno" (Perspectiva).
Guerrilheiro
Terminou preso por ocultar guerrilheiros no apartamento, em São Paulo. É o que registra o arquivo do Dops, como descoberto por Mário César Carvalho.
Foi torturado e, conta, perdeu inteiramente a cor dos cabelos, nos dias seguintes. Tem os cabelos brancos desde aquele início dos anos 70, não de agora, dos 60 anos.
Saiu do país para viver as revoluções dos Cravos, em Portugal, e de Moçambique. Mas deixou o teatro. Atravessou mais uma década como o "decano do ócio", apelido que ganhou de Telmo Martino e que aceitou, com o tempo.
Ele, Zé Celso, estava nas profundezas, segundo o mito que gostava de citar, trabalhando. Escreveu peças, fez happenings, usou Paulo Maluf e Eduardo Suplicy de atores em leituras. Maluf teria sido Penteu, o contrário de Dionísio, em "Bacantes".
Ergueu, à custa de manifestações e zombaria, um teatro, o novo Oficina, desenhado por Lina Bo Bardi e Edson Elito. Abriu os 90 com a abertura do teatro, fazendo nascer o Zé Celso que hoje se conhece.
Viável
Dizia não temer o presente, o risco de se expor e perder a lenda e história que já era, dos anos 60. Mas demorou a voltar ao palco, agora também como ator. Parecia não querer tornar-se viável, possível, nos anos 90.
Montou afinal "As Boas", de Jean Genet, com Raul Cortez como Madame e ele próprio e Marcelo Drummond como criadas, as criadas de Madame. Não suportou. Um mês em cartaz e "demitiu" Madame na figura de Raul Cortez, ator de quem fala carinhosamente desde o dia seguinte até hoje.
Abriu o novo Oficina, anos 90, com "Ham-Let", ele que jamais havia realizado um Shakespeare. A montagem começou com 12 horas de duração e chegou ao cartaz do Oficina com seis, que mentia serem quatro e meia.
É a peça que o dramaturgo Dionísio Neto disse um dia ter mudado sua visão de teatro, dele e de outros, como Marcelo Fonseca e Marco Antônio Braz. Dionísio participou de "Ham-let", foi Guildenstern.
Mas os atores do novo Oficina seriam outros.
Marcelo Drummond é o mestre-de-cerimônias, herdeiro de Renato Borghi, comediante de revista, ator brechtiano carnavalesco que comanda os espetáculos.
Pascoal da Conceição é o herdeiro, talvez, de Eugênio Kusnet, o mestre stanislavskiano do Oficina anos 60, e certamente o ator mais reconhecido do Oficina anos 90, um ator realista que se atira e se deixa levar além dos limites naturalistas, na "pista" do teatro.
Alleyona Cavali foi a Ofélia, como Zé Celso queria, "Ophallus", de falo. Mais do que a sensualidade, ela jogou e joga em cena um descontrole, uma falta de travas que de início fazia temer pela sua sanidade.
Denise Assunção, por fim, a irmã de Itamar Assumpção, conjunto de cantora e atriz, é o talento acabado, "natural", de domínio da ação e do público; mas apenas quando quer.
São eles, a diretora/iluminadora Cibele Forjaz e mais duas dezenas de atores e músicos que vão estar na "pista", no aniversário. Zé Celso, que sofreu um ataque do coração ao virar a noite antes da estréia de "Mistérios Gozosos", também vai estar, com as suas mãos trêmulas.
Mas que ninguém se preocupe. O artista atravessou a era da Aids sem aceitar a existência e a metáfora da praga. Zé Celso é imortal; palavra de quem já tentou, metaforicamente, matá-lo.

Peça: Bacantes
Autor: Eurípides
Diretor: José Celso Martinez Corrêa
Com: Marcelo Drummond, Fransérgio Araújo e outros
Quando: hoje e amanhã, às 19h
Onde: teatro Oficina (r. Jaceguai, 520, Bela Vista, região central, tel. 011/606-2818)
Quanto: R$ 10

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