São Paulo, sábado, 29 de março de 1997
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Os abusos e a complacência

ALOYSIO NUNES FERREIRA FILHO

Montesquieu, em seu "Espírito das Leis", chamou a atenção para o fato que, "toda vez que, na mesma pessoa, ou no mesmo corpo de magistrados, o Poder Legislativo é reunido ao Executivo, não há liberdade".
Sob esse ponto de vista, as medidas provisórias incorreriam no desagrado do barão Charles-Louis de Secondat de Montesquieu. De fato, nos termos do artigo 62 da Constituição, o presidente da República está autorizado, em determinadas circunstâncias, a exercer solitariamente os poderes próprios do Legislativo, uma instituição integrada por 513 deputados e 81 senadores.
Entretanto, um melhor exame do texto constitucional revela os contrapesos que ele contém, capazes de impedir que os poderes extraordinários do presidente da República degenerem em despotismo. As normas produzidas pelo presidente da República são apenas provisórias: elas perdem sua eficácia se não forem convertidas em lei, pelo Congresso, no prazo de 30 dias. Em princípio, nada deve escapar ao exame do corpo legislativo.
O pressuposto constitucional da relevância da situação -assim como o da urgência do provimento-, longe de defluir apenas do juízo pessoal do presidente, precisa ser compartilhado pelo Congresso.
O Legislativo, diz a Constituição, não se ausenta um só instante do processo: as medidas devem ser submetidas de imediato à sua apreciação, devendo mesmo ser convocado extraordinariamente se estiver em recesso.
Acontece que, de 1988 para cá, chegou-se a um círculo vicioso: edição, perda de validade por decurso de prazo, reedição das MPs. O Congresso anula-se como instância decisória.
Além de abster-se de decidir sobre o mérito do provisório que se perpetua, os congressistas, como regra, permitem que transcorra em branco o prazo que têm para pronunciar-se a respeito dos pressupostos de urgência e relevância que justificariam a edição da medida.
A anomalia assim instalada conflita com um valor básico da vida de um Estado Democrático de Direito: a segurança jurídica dos cidadãos. Contra essa situação mobilizam-se hoje reações convergentes nas duas casas legislativas, da situação e da oposição, do presidente da República e do Judiciário.
A busca da solução parte do pressuposto de que, na vida dos Estados modernos, podem ocorrer situações que exijam provimento legislativo imediato, sob pena de grave lesão ao interesse público. Mas a competência do presidente da República de antecipar-se, cautelarmente, ao processo legislativo ordinário, editando medidas provisórias, deverá ser limitada mais rigidamente do que no texto atual.
Assim, senadores e deputados trabalham hoje com vistas a estabelecer um elenco de assuntos insuscetíveis de serem alcançados por medida provisória.
Por outro lado, buscam-se introduzir, na Constituição e no regimento, mecanismos que impulsionem o Congresso a deliberar. Vai-se da ampliação do prazo de vigência das medidas provisórias, de 30 para 60 dias, à paralisação de todas as atividades legislativas, quando houver medida provisória pendente de votação. Há quem sustente mesmo a proibição da reedição.
O fundamental, entretanto, não reside exatamente nas regras, mas na vontade política de restabelecer um equilíbrio entre os poderes, hoje rompido por uma cadeia de abusos e complacências.

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