São Paulo, domingo, 30 de março de 1997
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Luxo

HANS-MAGNUS ENZENSBERGER
ESPECIAL PARA A FOLHA

Vale a pena, afinal, falar sobre isso? O tema não foi esgotado há muito? Uma polêmica de 2.000 anos parece ter-se exaurido. Tudo indica que o luxo tenha vencido o seu oponente. Ubíquo até a saciedade, ele conquistou as calçadas e os supermercados, pelo menos no assim chamado mundo ocidental, do qual, para escárnio de toda geografia, faz parte o Japão, mas não Cuba. Mesmo nas ruas de Moscou e nos bazares de Manila ele se difunde. Isto soa cínico em face da pobreza que grassa no Leste e Oeste. Porém, a vendedores e fregueses da abundância, essa réplica ainda não causou impressão e, hoje em dia, ela vale menos do que nunca. Se acontece, então, de explodir uma bomba diante de uma confeitaria parisiense ou um grupo de cabeças-de-vento, em Berlim, desafogar a sua raiva contra um restaurante onde se come muito bem para seu gosto, dificilmente se pode ver em semelhantes formas de protesto, tão brutais quanto fatigadas, mais que combates de retaguarda, a que faltam qualquer base nas massas.
Esta situação convida a uma retrospectiva. O impulso contra tudo que se chama luxo tem, de fato, um longo e venerável passado. Infindável é a série de filósofos e legisladores, de pregadores e demagogos que se declararam contra a opulência, a ostentação e o desperdício.
A exemplo do objeto de seu zelo, também seus argumentos mudaram no correr do tempo. Quem quisesse debatê-los teria ante si o trabalho de toda uma vida de historiador, mesmo que desejasse circunscrever-se à vizinhança mais próxima.
Já a proverbial educação espartana, no que diz respeito aos seus motivos e métodos, pouco tem em comum com as doutrinas dos cínicos; e, de novo, são temores totalmente outros que conduziram às leis de gasto e luxo, tão dracônicas quanto ineficazes, dos romanos. Savonarola queria entregar à fogueira das vaidades tudo o que não servia à salvação da alma; porém, os seus desígnios não eram, certamente, idênticos aos dos utopistas clássicos, que desejavam igualmente banir de seus diversos "Estados-Sol", sob ameaça das mais severas punições, tudo o que lhes parecia supérfluo. E assim por diante.
Todavia, quanto mais as razões puramente religiosas e morais dos pregadores perdiam em fundo, mais clara se tornava, como um tema político, a crítica aos costumes dissipadores dos ricos e poderosos. Quando o Iluminismo pôs na ordem do dia o lema da igualdade, o luxo, ao que parece, tornara-se definitivamente um escândalo social. Exterminar a ele e a todos que lhe estavam à mercê tornou-se, então, um objetivo sob cuja bandeira lutaram os revolucionários.
Não é fácil tomar pulso da longa polêmica que, assim, se deflagrou. Há, entretanto, um "locus classicus" em que se deixam fixar os seus principais argumentos. Trata-se da discussão sobre o luxo, travada na França dos séculos 17 e 18, na qual emergem quase todos os motivos que, desde então, dominaram o terreno. Já sob Henrique 4º, o duque de Sully exalta-se com a "corrupção das classes estamentais por obra do luxo e de todo o seu séquito -preguiça, torpor, concupiscência e desperdício"; com o fato de se gastar em excesso "com jardins suntuosos e palácios pomposos, as mais caras mobílias, ornatos de ouro e serviços de porcelana, com coches e cabriolés, festividades, licor e perfume". Até aí, sua crítica se atém às idéias imemoriais da pureza de costumes e suspeita de decadência, que já não eram estranhas aos romanos.

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