São Paulo, sexta-feira, 4 de abril de 1997
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Em defesa do sigilo

MAILSON DA NÓBREGA

Estamos em marcha batida para excluir os juízes do processo de quebra do sigilo bancário e fiscal dos cidadãos nos casos em que a medida se justifique. O Senado quer, a Receita Federal pede e parte da mídia apóia.
Esse poder seria transferido aos burocratas. Tudo é consequência do irracionalismo que costuma tomar conta das sociedades em momentos de comoção.
Estamos diante de um crime hediondo, o massacre de Diadema, que costuma dar azo a propostas bárbaras, como a tortura dos torturadores, o julgamento arbitrário e, em casos extremos, o linchamento puro e simples dos suspeitos.
A CPI dos precatórios aumentou a indignação da sociedade face à desfaçatez com que pilantras travestidos de pessoas corretas corromperam funcionários públicos, auferiram vantagens financeiras incríveis e conseguiram lavar os respectivos butins.
Felizmente, há os sensatos que, em vez de retrocesso, pedem autoridade plena à Justiça e a extinção do privilégio de que gozam policiais militares de ser investigados e julgados por sua corporação. Jamais advogam o arbítrio.
Na questão dos crimes de colarinho branco, o procurador-geral da República defendeu, em artigo nesta Folha (1º de abril de 97), reformas para aumentar a eficiência da Justiça nessa área, incluindo a introdução, no nosso processo penal, do instituto do "plea bargaining" do direito anglo-americano.
As reformas, disse Geraldo Brindeiro, não podem "significar, em nenhuma hipótese, prejuízo na observância rigorosa dos princípios constitucionais da legalidade, da presunção de inocência, do 'due process of law', do contraditório e da ampla defesa".
Esse cuidado não ocorre, infelizmente, no Poder Executivo, que vem há tempos tentando mudar a lei para permitir a quebra do sigilo fiscal e bancário ao talante de burocratas.
O Legislativo, que sempre se recusou a aceitar a mudança, parece agora convencido, por certo influenciado pelo clima antes referido.
O ilustre secretário da Receita Federal diz que o "argumento do direito individual é utilizado para defender fraudadores, contrabandistas e narcotraficantes (Folha, 28 de março de 97)". "Os homens de bem nada devem temer ("O Globo", 22 de março de 97)."
Não há quem defenda o sigilo para proteger infrações à lei. A questão é outra. Sociedades civilizadas não atribuem a burocratas o poder de decidir sobre essa matéria.
Dá para compreender a angústia da Receita com o grau de sonegação e com as dificuldades de fiscalizar operações financeiras de certos contribuintes.
É revoltante ver declarações risíveis de ricaços ao fisco, muitos com direito a devolução de Imposto de Renda. Foi o caso de banqueiros do escândalo dos precatórios.
A saída não pode ser, todavia, o menosprezo dos princípios mencionados pelo sr. Brindeiro nem a substituição do juiz pelo burocrata, que não é treinado para tanto.
Não tenho dúvida de que um homem da estirpe do sr. Everardo Maciel, que conheço de longa data, faria uso correto de tal poder, mas é preciso lembrar que ele poderá também ser usado por funcionários de distinta linhagem moral.
Basta lembrar que um graduado funcionário da Receita Federal defendeu, certa época, o direito de vazar informações de contribuintes, sob o obscuro argumento de que, embora ilegal, a atitude era legítima.
Recorde-se ainda que um senador do PT recebeu -e usou incorretamente- informação sigilosa sobre um banco, transmitida por funcionário do Banco Central com acesso privilegiado a dados do sistema financeiro.
Nesses dois casos, houve nítida afronta à Justiça. Imagine-se o que poderá acontecer quando o acesso às informações estiver autorizado pela lei.
O secretário Maciel fala na criação de um ombudsman para inibir o uso indevido desse poder ("O Globo", 2/4/97). Isso não impedirá o vazamento nem suas consequências: o assassínio de caráter e o linchamento moral.
Em muitos países, os bancos são obrigados a informar o governo sobre transações suspeitas, definidas em lei. É diferente. E é preciso levar em conta que seus burocratas não costumam vazar dados do contribuinte nem usam argumentos medievais para fazê-lo.
Há muito que aprender com experiências civilizadas, incluindo o rito sumário para as decisões judiciais sobre quebra de sigilo.
O risco é não dar tempo. Valham-nos Deus e o Supremo Tribunal Federal.

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