São Paulo, sexta-feira, 4 de abril de 1997
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Tortura nunca mais

ROBERTO ROMANO

A ditadura militar usou a tortura como instrumento de poder. Mas a maioria silenciosa calou-se, numa comunhão maldita com os donos da hora. Não adianta fingir: a massa apóia a força física, falsa mantenedora da segurança. O sr. Todo Mundo, na Alemanha, na França, na Itália, apoiou o fascismo.
Até hoje, na Europa, persistem as raízes malditas do anti-semitismo, e não se aplacaram os ódios contra o estrangeiro pobre. Jean-Marie Le Pen acumula ganhos eleitorais. Se continuam o desemprego e a irresponsabilidade dos que só reconhecem o mercado, logo seu partido terá forte representação parlamentar. Num passo, o líder autoritário estará no palácio do primeiro-ministro.
Impossível? Quem acompanha a história, de 1789 até hoje, sabe que as multidões, sob lideranças esclarecidas, conquistaram os direitos humanos, assegurando justiça universal. Mas elas seguiram outras tendências, quando os filhos das Luzes traíram os ideais democráticos.
Num ritmo pendular, todo movimento em prol das liberdades foi seguido por outro, em sentido oposto. Os fracassos do regime liberal foram pagos com moeda autoritária, comprando apoio popular. O Termidor abriu caminho para a longa noite de censura e polícia, sob Napoleão, disciplinando o povo europeu para as lições de Hitler.
A massa brasileira decorou a mesma cartilha violenta, nas mãos de Filinto Muller, que empregava ferros ardentes nas peles dos que iam contra Vargas. Os militares apenas retomaram a pedagogia do pau-de-arara, aplicando-a sem distinção de pessoas.
Apesar de tudo, ainda não sumiram os legados de 1789 e as idéias, traduzidas em leis nacionais e cosmopolitas, dos direitos humanos. No dia 31 de abril último, na Câmara Municipal de São Paulo, foi lançado um livro precioso para a luta contra os fascismos. Refiro-me ao texto da Procuradoria Geral do Estado reunindo as normas internacionais para a proteção dos direitos humanos. Todos os democratas precisam conseguir seu exemplar.
Noite memorável na Câmara dos Vereadores. Autoridades executivas, judiciárias, legislativas celebraram, naquela coletânea, mais um instrumento em prol da cidadania. O procurador-geral do Estado recordou o imperativo categórico do respeito à pessoa. Todos saíram com o sentimento íntimo do dever fortalecido, mas sabendo que, se o remédio existe, a doença ainda controla o corpo social.
No livro mencionado, encontra-se o texto completo da Convenção contra Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes, adotada pela ONU em 1984 e ratificada pelo Brasil em 1989.
Triste realidade. Ao ligar sua televisão, ainda na mesma noite, todos os que festejaram a passagem de leis civilizadas para o nosso idioma assistiram a cenas dignas do pior fascismo. Covardes, usurpando a farda que lhes faculta autoridade, espancavam civis pacíficos, usavam suas armas para matar friamente, rindo como hienas.
Todo Estado soberano se define pelos monopólios da força física, da gerência do excedente econômico, da norma jurídica. Nele, nenhum particular, individualmente ou em grupo, tem o direito de impor taxas, leis e, sobretudo, penalidades aos cidadãos. Por isso é crime formar quadrilhas.
Quem, em qualquer segmento estatal, desvia leis, dinheiro ou força ameaça os que se agregaram sob o mando público para preservar a própria segurança, sobretudo a vida. Esses crimes também se dirigem contra o Estado, ferindo mortalmente a soberania. Se os rebeldes fardados devem ser punidos, as autoridades que não o fizerem conspiram contra os cidadãos e contra si, manchando o cargo e tornando-se depositárias infiéis da confiança pública.
O governador Mário Covas enfrenta um dilema dramático: ou pune os que mancharam a farda ou anuncia a falência absoluta do poder público.
Recentemente, a Folha editou em primeira página as fotos de certo PM torturando uma criança. Pouco depois, o menino foi ferido a bala. Desculpa dos bem-pensantes: o garoto era viciado em drogas. Na Alemanha nazista, também o fato de ser judeu era mais do que suficiente para absolver a selvageria policial.
Agora não se pode nem falar em "drogados". Os que sofreram vilipêndio e torturas são pessoas comuns. A violência ocorreu numa favela, em Diadema. Será preciso que os assassinos, sob manto oficial, cheguem aos ricos, com métodos idênticos, para que todos se pronunciem? Quando a polícia torturou inocentes, no caso Bodega, houve silêncio cúmplice.
Tudo isso mostra que é importante o Estado soberano, com autoridades respeitadas pelos cidadãos e temidas pelos bandidos, mesmo que infiltrados na própria administração pública, no setor econômico, jurídico, ou policial.
Com a palavra, o Legislativo federal, para destruir de vez a Justiça Militar especializada, colocando os criminosos sob o manto da toga e do júri popular. Caso contrário, mesmo o comando da PM será impotente para deter os abusos cometidos em seu interior.

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