São Paulo, sexta-feira, 4 de abril de 1997
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Pacto de silêncio

JOSÉ ARISTODEMO PINOTTI

Fico perplexo por constatar um pacto de silêncio diante da exclusão social e do desemprego, da ausência total de políticas públicas nas áreas que definem a qualidade de vida do cidadão, da estagnação do processo de desenvolvimento e da gradativa falência financeira do país.
Todos se esquivam de conversar sobre isso, e a resposta a qualquer reflexão nesse sentido vem sempre com as conquistas do controle da inflação e do maior consumo, como se a cidadania se concretizasse na face burguesa e pequena do consumismo e dela não fizessem parte educação, saúde, moradia, emprego, segurança, enfim, dignidade de vida, que, junto com liberdade e participação, definem a cidadania.
Se fizermos uma análise hegeliana, não se entenderá por que não surgiu proposta contraditória a essa distorção do liberalismo (Locke, Tocqueville e Stuart Mills reviram no túmulo) denominada "globalização da economia".
Nascida da ruína das ditaduras de direita e de esquerda, como um minimalismo corrompido do processo democrático, que perde seu nacionalismo e seus ideais igualitários, a globalização cresce e se expande na ausência do medo das transformações de esquerda.
Nesse novo regime, a liberdade individual predomina sobre a coletiva, o cidadão é substituído pelo burguês, e a idéia de felicidade é extremamente individual e estreita.
Trata-se de uma nova e poderosa religião -por isso o pacto de silêncio-, da qual o templo é o "shopping center", e o "deus presidente do mundo" é o poder econômico (George Orwell).
De qualquer modo, se acreditarmos em Hegel -e não há porque desmenti-lo na sua teoria da evolução dialética-, já deveria estar havendo um contraditório para esse regime, que não será a volta ao arcaísmo da extrema-esquerda nem à ditadura de direita, tampouco a democracia paternalista, com seu Estado de Bem-Estar Social.
A história não se repete. Aceitando todas essas exclusões e mantendo certos princípios éticos imperecíveis do iluminismo, delineia-se uma proposta política de contestação e alternativa à globalização da economia. Isso já ocorre na Europa há algum tempo, a história percorre o seu caminho lá.
Um bom exemplo é o jovem trabalhista inglês Tony Blair, próximo primeiro-ministro. Uma de suas frases: "A assistência médica deve estar baseada na necessidade, não na sua capacidade de pagar por ela". Nós, aqui, estamos atrasados e na sua contramão, pois vamos mergulhando, de olhos fechados, num processo considerado perverso e combatido onde já ocorreu.
A globalização da economia -que parece ser um determinismo histórico ou, usando meu jargão, uma grave doença que um dia será curada- tem duas faces: a dos países centrais, com um Estado enxuto e forte, e a dos países periféricos, onde o Estado adquire as características "convenientes" para ser explorado economicamente pelos países centrais: mínimo e fraco.
Esses poderosos interesses econômicos submetem a classe política e a sociedade, que fica adormecida e se convence de que é feliz consumindo um pouco mais dentro dessa nova religião.
Mas nada há que possa segurar a história, mais inexorável do que a globalização da economia. Novamente socorrendo-me de Hegel ("O espírito do mundo progride rumo a uma consciência cada vez maior de si mesmo"), posso afirmar que o contraditório surgirá com cada vez mais evidência e consciência. E, para que não seja necessário sangrar -como já começa no movimento dos sem-terra ou na guerrilha urbana que rouba, estupra e mata-, seria bom que surgisse logo, com o entendimento de que o bem-estar social é a própria expressão da cidadania.
Ele não pode continuar a vir apenas do paternalismo do Estado, que deve se tornar menor, mas suficientemente forte para, por uma política econômica firme e coerente e políticas públicas compensatórias e modernas, criar a "sociedade" do bem-estar com a participação da sociedade civil organizada.
Para isso temos que substituir o excessivo liberalismo econômico por um moderado intervencionismo, objetivando proteger o país e o povo. A isso se pode chamar inserção crítica e altiva na globalização inexorável, preenchendo os valores liberais com conteúdos éticos, morais e sociais, entendendo liberdade individual como algo mais que a anuência com o vale-tudo, não como contraposição às liberdades coletivas.
A boa estratégia inclui a urgente descentralização das políticas públicas na área social para dar mais participação e poder ao cidadão, aproximando-o da administração e da política. Inclui, também, a independência de poderes, libertando o Legislativo para o debate e a reflexão e tornando o Congresso um fórum livre, que deverá substituir o escritório submisso e de acertos pessoais.

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