São Paulo, sábado, 5 de abril de 1997
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A face neocollorida

JOÃO PIZA

E vem a lume a medida provisória nº 1.570, adotada pelo Executivo na última semana de março: "o rei está nu". Poucos notaram. Foi na calada da noite; ou na aurora de feriado religioso nacional, raro momento em que a sociedade pode esquecer as privações a que vem se submetendo para que sejam preservadas as diretrizes do plano econômico em curso, vitorioso (por enquanto).
Passou quase despercebido o comprometimento irremediável do equilíbrio entre os Poderes da República, com a delegação de poderes de tal ordem ao Executivo em detrimento do Legislativo e, particularmente, do Judiciário, que já se fala em fujimorização "à la rive gauche".
São singelos três artigos de uma medida provisória que, como tantas outras, não atende nem sequer aos pressupostos constitucionais para ser adotada, quais sejam, a urgência e relevância (art. 62). Mas isso é pouco, posto que esse governo se caracteriza por governar por meio de tal instrumento.
A pretexto de disciplinar a aplicação da tutela antecipada contra a Fazenda Pública -e somente contra ela-, impõe limites draconianos aos princípios de acesso à Justiça (especialmente no que toca o tratamento isonômico das partes litigantes) e do devido processo legal ("due process of law"), pilares do ordenamento jurídico nacional.
Em seu artigo primeiro, poucas novidades, a não ser a explicitação da intenção do mau pagador (Estado) em procrastinar o cumprimento de suas obrigações. Se qualquer outra parte (que não o Estado) assim agisse no processo, seria condenada a pagamento de multa, como litigante de má-fé, com todas as consequências daí advindas.
Já o seu artigo segundo -pérola de autoritarismo- assim dispõe: "Sempre que houver a possibilidade de pessoa jurídica de direito público requerida vir a sofrer dano, em virtude da concessão de liminar ou de qualquer medida de caráter antecipatório, o juiz ou o relator determinará a prestação de garantia real ou fidejussória." Que beleza! Se não fosse totalmente inconstitucional, violando os princípios supra mencionados, seria, além de tudo, imoral, numa sociedade que se pretende democrática.
Para que o cidadão comum possa entender o alcance de tal medida, basta imaginar que um banqueiro, ao requerer uma liminar ao Judiciário, que possa eventualmente vir a causar dano à Fazenda Pública, tem condições econômicas para prestar caução (garantia), e, portanto, esse banqueiro terá acesso à Justiça.
E nós, pobres mortais, como poderíamos obter, por exemplo, uma medida liminar que obstasse a alienação escandalosa de patrimônio nacional, como a campanha Vale do Rio Doce? Nunca! Jamais! Em tempo algum!
Portanto, a sobreviver tal instrumento, teremos que, obrigatoriamente, mudar o artigo 5º da Constituição Federal, dizendo que todos são iguais perante a lei; porém uns mais iguais do que os outros.
Mas, infelizmente, isso não é novidade. O ex-presidente Collor (de triste memória), que governava e legislava por medidas provisórias, pretendeu impedir a concessão de liminar em ação cautelar contra a Fazenda Pública, sob o pretexto de comprometimento de seu plano de estabilização econômica.
Naquela época, o Judiciário -particularmente os juízes federais de São Paulo e o Tribunal Regional Federal da 3ª Região- ignorou, olimpicamente, tal sandice.
Quando da apreciação dessa questão pelo Supremo Tribunal Federal, os fundamentos da inconstitucionalidade da medida provisória de então foram exaustivamente demonstrados pelos irretocáveis votos dos ministros Paulo Brossard e Celso de Mello, recusando-se a engrossar a onda patriótica que acreditava ser necessário atender o Planalto para proteger o "Plano Real" de então, atuaram em nossa Suprema Corte para defender a Constituição. Isso parece curial; mas, infelizmente, nesta República é exceção.
A justificativa oficial para a adoção dessa malfadada MP 1.570 é pueril. Reclama o governo que alguns juízes concedem tutelas liminares que causam prejuízo à Fazenda Pública...
Ora, senhores do Planalto! Quanta inocência... Se o governo tivesse a humildade de se colocar, perante o Judiciário, como um litigante comum (como, aliás, estabelece o princípio da isonomia antes retratado), lembraria (que amnésia...) que o recurso cabível contra essas liminares (tão nocivas), o agravo de instrumento, pode ter efeito suspensivo, isto é, plena capacidade de impedir que a decisão (se efetivamente for equivocada) cause dano à Fazenda Pública.
Mas não. O devido processo legal não serve para o Executivo. Muito mais fácil do que agir como litigante comum é adotar medida provisória que, colloridamente, imponha obstáculo ao acesso do cidadão à Justiça e retire do Judiciário instrumentos imprescindíveis à efetiva tutela dos direitos do cidadão (as liminares).
No mais, causaram tristeza e perplexidade, dentre os operadores do direito, as declarações do sr. presidente da República, por seu porta-voz, admoestando juízes federais que denunciaram o descalabro perpetrado por essa medida provisória, acusando-os, inclusive, de incitar a desobediência. Ora, cidadãos da planície, ou o sr. presidente jurou a Constituição sem conhecê-la amiúde ou tenta escandalosamente calar a magistratura nacional.

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