São Paulo, quarta-feira, 9 de abril de 1997
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Controles, papiros e burocratas

VICENTE AMATO NETO; JACYR PASTERNAK

Quanto aos pobres, aos dependentes do Sistema Único de Saúde e a outros pouco abonados, oremos por eles
VICENTE AMATO NETO e JACYR PASTERNAK
Todo país civilizado precisa ter alguma maneira de controlar a qualidade dos medicamentos e dos produtos utilizados nos cuidados relacionados com a saúde de seus cidadãos. Também deve definir com exatidão o que é medicamento, pois chás de bruxas, fórmulas jamais testadas cientificamente e coisas alternativas deveriam ser nominadas e tratadas como algo diferente do que chamamos de remédios.
O governo, segundo nossa opinião, não deve proibir esse tipo de negócio, mas teria obrigação de tornar claro que garante o que foi rigorosamente avaliado, resultando que o resto cada um tomará por sua conta e risco.
Nesta nossa curiosa nação tropical, com sua secular obsessão luso-brasileira por documentos, está acontecendo algo que nem os mestres do realismo fantástico conseguiriam imaginar nas mais fantasiosas novelas.
Nossos iluminados órgãos brasilienses exigem registros, cobrando muito por eles, para todos os milhares, senão milhões de reativos de laboratórios e "kits" utilizados em exames, incluindo até os já autorizados pela Food and Drug Administration (FDA). Sem o papel, a importação é proibida.
Naturalmente, e isto pode ser tranquilamente assumido, nenhuma organização brasileira ou brasiliense é competente para aferir a qualidade desses produtos. Nosso pobre controle nacional de qualidade em saúde foi capaz de jurar que uma vacina antimeningocócica, cá fabricada, estava perfeita, e as reações que ela estava promovendo foram desconsideradas sumariamente, entre outras proezas.
Como é que vão avaliar testes baseados em biologia molecular, por exemplo? Teríamos que implantar uma FDA brasileira, o que não seria má idéia, se bem que não conseguimos ver isso funcionando dentro do esquema de serviço público brasileiro, com principescos salários e trabalhando com lei de licitações semelhante à que o saudoso marquês de Pombal utilizava séculos atrás.
Assim, burrocratas -e não é erro de imprensa, caro revisor- garantirão que nossos pacientes não vão poder contar com exames de laboratório de qualidade. Assumirão também que gente mais rica os faça, no exterior, o que não é difícil, porquanto nem é preciso ir para lá, afigurando-se viável mandar o sangue daqui e receber o resultado por fax em três dias. Quanto aos pobres, aos dependentes do Sistema Único de Saúde (SUS) e a outros pouco abonados, oremos por eles.
Pior ainda é o que sucede com remédios não licenciados aqui, porque as firmas que os produzem não querem dar-se ao trabalho de enfrentar os papirocratas brasilienses. A importação está proibida, e existem alguns que, para determinados pacientes, são a única opção.
A vontade que temos é de dizer para o doente, ou para sua família, que a única solução contra inspirados autores de portarias malucas é processar, por tentativa de homicídio, os que assinaram e endossaram tais inadequações.
O Brasil antigo, centralizador, burocrático e obtuso está ainda aí, apesar da modernização e da abertura da economia, que queremos ver chegar rapidamente ao setor saúde, ou estaremos vivendo, esquizofrenicamente, em dois países ao mesmo tempo.
Referimo-nos ao Brasil de hoje, inserido no contexto internacional na maior parte das coisas, e ao Brasil da ditadura e dos decretos-leis secretos, que ninguém sabe quem avalizou nem quem são seus responsáveis na área médico-assistencial.

Vicente Amato Neto, 67, infectologista, é professor-titular do Departamento de Doenças Infecciosas e Parasitárias da Faculdade de Medicina da USP (Universidade de São Paulo).

Jacyr Pasternak, 53, infectologista, é médico-assistente da Divisão de Clínica e Moléstias Infecciosas e Parasitárias do Hospital das Clínicas da USP.

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