São Paulo, quarta-feira, 9 de abril de 1997
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O transformista FHC

EMIR SADER

Enquanto os dois partidos mais importantes do bloco conservador no poder brigam pela liderança do governo, o historiador Thomas Skidmore dá a resposta sobre o sentido do conflito. Perguntado sobre se o governo seria muito diferente se o presidente fosse o senador Antonio Carlos Magalhães, respondeu: "As diferenças seriam apenas de estilo".
O governo FHC representou mais uma operação "transformista" na história brasileira. Trata-se de, partindo de um problema real, dar-lhe uma solução que, renovando o estilo e a forma de governar, puna os de baixo e absolva os de cima.
Foi assim ao longo de toda a história brasileira: da Independência -reduzida a um "negócio" de pai para filho-, afirmando-a, mas não à custa dos colonizadores e sim da República e dos trabalhadores escravos. Foi assim na Proclamação da República, que libertou o país da monarquia, mas não em nome de um regime republicano e sim da afirmação institucional da hegemonia dos setores primário-exportadores e de seus poderes locais.
O mesmo aconteceu com a Revolução de 30 -feita "antes que o povo a faça"-, em que o reconhecimento da questão social teve como vítima sua limitação aos trabalhadores urbanos da economia formal, excluindo a grande maioria, trabalhando no campo (e nas tarefas domésticas urbanas) e perpetuando assim a estrutura de poder no campo, a salvo da reforma agrária.
A passagem da ditadura à democracia igualmente resolveu um problema crucial -o de se desfazer de um regime esgotado-, porém sem que os setores hegemônicos pagassem qualquer preço por aquela transição. A estrutura de poder continuou exatamente a mesma -do monopólio da terra ao dos meios de comunicação, do poder do capital financeiro ao das grandes corporações nacionais e internacionais-, com a transição ditada pelo Colégio Eleitoral e não pelas eleições diretas.
Perderam os que não foram beneficiados pela recuperação do déficit social produzido por um modelo econômico que expandiu a economia concentrando ainda mais a renda. Ganharam os que se reciclaram para a "democracia", sem perder nem anéis, menos ainda dedos.
Recordemos como o diploma de democrata foi vulgarizado pelo simples antimalufismo, de que o melhor exemplo foi ACM, que passou de Toninho Malvadeza a Toninho Ternura -segundo os antigos opositores e hoje estreitos aliados- apenas porque seu candidato -Andreazza- foi derrotado. Passaram a apoiar Tancredo, opondo-se a Maluf. Tiveram passaporte para o novo regime, mantendo-se no poder ACM, Marco Maciel, Sarney e tudo o que representam.
O Plano Real representou uma outra solução "transformista" a um problema real: a inflação.
A modalidade de estabilização monetária que o plano produziu permitiu que os lucros dos bancos fossem preservados -os que entraram em crise tinham problemas graves de administração há muito, os outros seguem exibindo sem pudor seus lucros milionários-, à custa da falência das finanças públicas, exatamente por parte daqueles que diziam que iam saneá-las. À custa, também, do esfacelamento da indústria nacional-estatal, que deveria ser tornada pública e não sucateada no mercado, e privada, do enfraquecimento da economia formal e do debilitamento da classe média.
Assim, parece que "ninguém perdeu, e o país ganhou", como num passe de mágica. Esse é o efeito ideológico do transformismo, dos pactos de elite que costuram a história brasileira.
No caso do Plano Real, perde a possibilidade de um projeto nacional que permitisse ao Brasil uma inserção soberana não-subordinada na nova divisão internacional do trabalho.
Perde a sociedade civil, enfraquecida porque os movimentos sociais organizados são o principal objeto da sanha do governo -dos sem-terra aos sindicatos, dos movimentos indígenas aos movimentos pelos direitos humanos.
Perde a democracia, esvaziada por um presidente que governa por medidas provisórias, compra os votos de congressistas, estimula a infidelidade partidária, se promove com recursos milionários cuja fonte não se preocupa em revelar, ao mesmo tempo que deseja saber como os sem-terra conseguem organizar uma marcha pacífica de milhares de quilômetros a Brasília na luta pela democratização da terra.
O novo bloco no poder -cujo eixo está na aliança PSDB/PFL, selada pela presença de FHC- representa esse novo transformismo e, nessa qualidade, é a nova direita no Brasil.
FHC deu o álibi de que a direita tradicional precisava: o antiestatismo, a privatização e a exaltação do mercado como componentes de uma nova "modernidade", a desregulamentação, reatualizaram o velho liberalismo.
De cobertura para o modelo oligárquico-exportador, passou a acobertar a privatização do Estado e a privatização das relações sociais -as propostas de "flexibilização do mercado de trabalho" (será, pelo menos, o término do trabalho escravo, ou simplesmente a generalização do trabalho precário, a retração da cidadania?).
O Estado intervencionista vai bem, obrigado, para as elites dominantes, apenas entrou em crise pelo lado das políticas sociais, no que toca às classes dominadas.
Uma empresa nacional afirma em recente propaganda pelo rádio que "alguém" disse que "é preciso mudar para se manter sempre igual". Esse alguém é o personagem central de Tommaso de Lampedusa, em "Il Gattopardo", cujo original é: "É preciso que tudo mude, para que tudo siga igual". Ou se se preferir a versão francesa: "Plus ça change, plus c'est même chose".
Muda o estilo, como disse Skidmore. Tal qual o último monarca, o mandatário é gente fina, o país é que segue terrível. Fala-se da reforma do Estado para não fazer a reforma da sociedade. Essa é a substância do pensamento conservador, na sua versão "gattopardista" atual, no transformismo pelo qual FHC passará à história. As elites governantes agradecem, com seu "uh-tererê" e os votos para o continuísmo.

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