São Paulo, domingo, 13 de abril de 1997
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Reforma agrária: compromisso de todos

FERNANDO HENRIQUE CARDOSO

Em agosto de 1996, o Conselho do Programa da Comunidade Solidária realizou uma reunião sobre a reforma agrária da qual participaram representantes do governo e da sociedade civil, envolvidos com o tema. Compareceram os ministros da Política Fundiária e da Agricultura, um representante dos proprietários rurais, dirigentes da Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura -Contag- e do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra -MST, além de conselheiros do Programa da Comunidade Solidária.
Não obstante a persistência de divergências entre trabalhadores, proprietários de terra e governo, a discussão deixou nos participantes a convicção de que o processo de profundas transformações em curso no meio rural era irreversível. Mais do que isso, os três setores lograram redigir um documento, inédito em discussões sobre os conflitos no campo, com sete pontos de consenso sobre a reforma agrária:
a) uma política de desenvolvimento rural é necessária e deve incluir a reforma agrária, assim como o fortalecimento da agricultura familiar;
b) o processo de reforma agrária exige a ação articulada dos diversos órgãos e dos três níveis de governo (federal, estadual e municipal), bem como dos poderes Executivo, Legislativo e Judiciário;
c) a execução da reforma agrária precisa de procedimentos burocráticos mais ágeis e eficientes e do aumento da capacidade administrativa do governo;
d) a realização efetiva da reforma agrária exige a alocação e a liberação oportuna dos recursos orçamentários e financeiros, para o cumprimento das metas fixadas pelo governo;
e) a legislação agrária brasileira precisa ser atualizada e os processos jurídicos acelerados;
f) o desenvolvimento sustentável dos assentamentos é condição imprescindível para o sucesso da reforma agrária;
g) todo esse processo exige parcerias entre os diversos atores governamentais e não-governamentais.
Essas são, na verdade, as diretrizes que têm guiado a ação do atual governo para corrigir uma estrutura agrária inadequada e injusta, herdada dos tempos coloniais. E muito tem sido feito.
O número de assentamentos de famílias sem terra em 1996 foi cinco vezes maior do que a média anual de qualquer governo anterior. Os procedimentos jurídicos para a desapropriação foram simplificados, enquanto que os recursos financeiros foram aumentados e liberados com maior rapidez.
A revisão do Imposto Territorial Rural (ITR), aprovada em dezembro de 1996, elevou de 4,5% para 20% a alíquota sobre a grande propriedade improdutiva, ao mesmo tempo em que simplificou e facilitou a cobrança do imposto. O novo ITR, por si só, introduz verdadeira revolução na estrutura fundiária do país.
Paralelamente, o governo, juntamente com o Congresso, vêm tomando medidas rigorosas para coibir a violência e combater a impunidade. No plano legal, já foi aprovada a lei que qualifica como crime o porte não autorizado de armas. Também já foi sancionada a lei que transfere da Justiça Militar, para a Civil, a competência para o julgamento dos crimes dolosos contra a vida praticados por policiais militares. Outra lei, aprovada mais recentemente, tipifica o crime de tortura. Por fim, encontra-se na Câmara dos Deputados proposta de emenda constitucional que atribui à Justiça Federal competência para julgar violações contra os direitos humanos definidos em lei.
No plano administrativo, a ação conjugada da Polícia Federal e de forças militares com vistas ao desarmamento em áreas de conflito é ação preventiva que pode reduzir significativamente a violência no campo.
O atual governo, ao longo de seus quatro anos, terá assentado, pelo menos, 280 mil famílias, ou seja, cerca de 25% a mais do que foi feito em todos os governos federais anteriores somados, desde 1964. Mas, cada vez fica mais claro, para o governo e para a sociedade, que só assentar não basta. Dos assentamentos feitos até 1994, cerca de 40 mil famílias abandonaram suas terras, enquanto que as demais permanecem na condição de assentados, vivendo, total ou parcialmente, às custas dos programas de assistência do governo.
O desafio da reforma agrária continua a ser, em primeiro lugar, o de dar terra a quem não a tem, mas passa a ser, cada vez mais, igualmente o de assegurar que o assentado possa transformar-se em agricultor produtivo e rentável.
Este é o objetivo do conjunto de programas novos, que o governo já lançou e está por lançar. Eles partem do pressuposto de que é preciso integrar mais estreitamente as ações do governo federal em favor dos assentamentos; descentralizar muitas das iniciativas para o nível estadual ou municipal; e, por fim, ampliar as parcerias com a sociedade.
O governo está buscando cumprir a sua parte. Está fazendo mais do que foi feito em qualquer período anterior, sob qualquer ponto de vista. Mas está ciente também de que mais terá que ser feito, pois o problema não se reduz à questão, embora verdadeira, de uma estrutura fundiária iníqua. Ele reflete hoje, igualmente, a liberação de mão-de-obra, decorrente da profunda transformação do sistema produtivo no campo. O que ocorreu na Europa, no século passado, se repetiu no Brasil da segunda metade do século 20.
O objetivo da reforma agrária não deve ser necessariamente o de aumento da produção agrícola, mas sim o de criar empregos produtivos e rentáveis, para os milhares de brasileiros que buscam o seu sustento no campo. As ações de reforma agrária, por isso, devem estar acompanhadas de programas de apoio ao pequeno agricultor e de geração de emprego no campo, tal como vem ocorrendo.
A questão agrária não é, portanto, apenas econômica. Ela é sobre tudo social e moral. E só poderá ser resolvida mediante a integração dos esforços das três instâncias de governo e de um compromisso efetivo de toda a sociedade.
O Brasil é um dos poucos países com verdadeiras condições de gerar milhões de empregos no campo, pela possibilidade de estender suas fronteiras agrícolas, pela disponibilidade de tecnologia e por um mercado consumidor em expansão, sobretudo após o Real.
As condições estão dadas, assim, para corrigir estruturas e relações iníquas, herdadas da época colonial. Um governo democrático tem o dever de atribuir propriedade às ações que visem a reduzir formas de exclusão e a promover maior justiça social. Mas, por ser democrático, tem também um compromisso com a lei. Porque é justamente o desrespeito às lei e a complacência secular com o desrespeito à lei que explicam, ainda que não justifique, a violência e as reiteradas violações aos direitos humanos no campo.
O problema da terra, tão antigo quanto o país, não poderá ser resolvido por um governo. Talvez, por uma geração. Mas para se fazer uma longa marcha, é preciso dar o primeiro passo. E este já foi dado por este governo.

Texto Anterior: FHC diz que recebe sem-terra em Brasília
Próximo Texto: Religiosos ajudaram na fuga dos dirigentes dos sem-terra
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.