São Paulo, domingo, 13 de abril de 1997
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Fetiche e feticheiros

MARCOS AUGUSTO GONÇALVES
EDITOR DE DOMINGO

Houve um tempo em que a palavra "irreversível" caminhava ao lado de um corpo de idéias que propugnava o igualitarismo, a solidariedade social e a distribuição de riquezas. Era "irreversível" a adoção do socialismo como sistema político-econômico.
Claro que não bastava cruzar os braços e esperar por seu advento. Mas a própria lógica da história e a dinâmica de contradições do capitalismo levariam o planeta à socialização dos meios de produção, à gestão planejada, à felicidade coletivizada.
O mundo caminhava para os ideais de 17. Desde então, cada vez mais países ingressavam na esfera socialista.
Tudo era uma questão de tempo, de aproveitamento das oportunidades históricas, de vontade e persistência. As desigualdades e os fetiches da era burguesa ruiriam ante a consciência e a práxis do novo homem socialista.
Hoje, para usar um divertido trocadilho cunhado por um amigo, tudo leva a crer que o "fetiche virou contra o feticheiro".
O bloco que comandava a transformação implodiu, exibindo mazelas já intuídas, outras conhecidas, quase todas escamoteadas.
O socialismo real parece, agora, ter sido uma espécie de modo de produção asiático para operar a transição de certos países semifeudais ou pré-capitalistas para o capitalismo. Dos quais, o mais bem-sucedido deve ser a China.
Resultado: a mercantilização da vida triunfa como nunca, o mercado ergue-se totemicamente sobre um mundo cada vez mais disposto a se associar e buscar posições no grande clube da globalização.
Desobrigados, pelo relaxamento da pressão do bloco soviético, a promover medidas de amparo social, os países do então "bloco capitalista" partem para o corte: no emprego e nos benefícios.
No Brasil, que com certo atraso tenta obter a carteirinha de sócio da nova era, o discurso voltado para persuadir a sociedade do novo destino à vista procura trazer para seu terreno -não fosse professado por ex-socialistas- certas expressões e raciocínios de seu antípoda.
Assim, recorre-se a uma retórica bastante próxima à das velhas esquerdas, mas com sinais invertidos.
Fala-se em mudança, em reforma, em avanço. Mas o que hoje é mudança antes era conservação, o que é reforma e avanço, era recuo.
E o que é "irreversível" passa a ser a ordem que deveria anteriormente capitular.
Irreversível é o império do mercado. Irreversível é a globalização, é a competitividade, é a diminuição do Estado e a privatização. É também a existência de excluídos e daqueles que o presidente chamou de "inempregáveis".
Essa idéia de irreversibilidade da nova fase de modernização é, em vários sentidos, perigosa.
Parece claro que certos aspectos do atual consenso capitalista se impõem, de fato, como condição para uma outra etapa de acumulação de riquezas. A isso, a má experiência do Estado socialista não tem como apresentar-se como alternativa.
Porém, o conformismo subjacente -ou mesmo explícito- em relação aos limites do modelo parece condenar ao deus-dará uma parte considerável de seres humanos vivos sobre a face da terra.
Que esses primatas pensantes tenham nascido em terras mais aquinhoadas, minora o drama, ainda que não o resolva.
Que tenham tido a má sorte de encarnar em países miseráveis, como os africanos, ou semimiseráveis, como o Brasil, é uma tragédia.
Se a perpetuação dessa divisão e a simples destruição dos mecanismos de bem-estar social é o pressuposto irreversível da nova ordem, algo diz que sua falência será, ela sim, irreversível.

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