São Paulo, domingo, 13 de abril de 1997
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O escândalo da Vale...

ROBERTO CAMPOS

"Empresa privada é aquela que o governo controla; empresa pública é aquela que ninguém controla", do "Diário de um Diplomata"

Nos anos sessenta, durante o governo Castello Branco, a Vale do Rio Doce, receosa da concorrência da Hanna Mining Co., mobilizou-se politicamente para obter o monopólio de exportação de minério de ferro, como "atividade estratégica". Felizmente para o país e para a empresa essa pretensão foi rejeitada. O ministro da Fazenda Octávio Bulhões e eu próprio, como ministro do Planejamento, já achávamos absurdo o monopólio da Petrossauro e não queríamos repetir o erro.
Estávamos certos. Sob o acicate da competição, a empresa adquiriu eficiência e venceu no mercado internacional, passando a ser uma das quatro maiores mineradoras do mundo. A intimidante Hanna Mining tornou-se acionista minoritária do grupo Antunes e acabou retirando-se do país. A Vale foi feliz sob dois aspectos: sofreu poucas intervenções politizantes, tendo sido gerenciada principalmente por profissionais; e, durante muito tempo, teve a guiá-la e inspirá-la um dos mais competentes planejadores brasileiros, Eliezer Batista, dotado de grande criatividade, competência logística e visão estratégica.
Seria assim a Vale do Rio Doce, pensava eu, uma única e gloriosa exceção à minha máxima de que as "empresas públicas não são do público e sim dos funcionários que as tripulam e dos políticos que as manipulam".
Ledo engano! Reexaminando dados recentes da Vale, agora que se acirrou a controvérsia sobre a privatização, revigora-se minha convicção de que não existem estatais "rentáveis" para o Tesouro. São rentáveis apenas para os funcionários. No caso da Vale, o tratamento dado ao Tesouro, que representa 150 milhões de cidadãos, é simplesmente ignominioso. O capital empregado rendeu nos últimos cinco anos, exaustivamente analisados pelo BNDES, apenas 1,7% ao ano, ou seja, menos de um terço da caderneta de poupança. Vejamos os dados.
Nunca poderia eu imaginar que os 17.403 funcionários da Vale (esse o efetivo médio do período), que são assalariados e não acionistas, recebessem uma participação nos lucros equivalente a 2,47 vezes os dividendos líquidos do principal acionista, o Tesouro, que detém 51% do capital! A desproporção é ridícula: cada cidadão fez jus no quinquênio a R$ 1,18; cada um dos 67 milhões que compõe a população economicamente ativa, a R$ 2,65; e cada funcionário da Vale, a R$ 25.283 (exclusive salários). E isso não é tudo. Para o fundo de pensões Valia, que é patrimônio privado dos funcionários, a empresa contribuiu generosamente com R$ 518 milhões, ou seja, quase 3 vezes os dividendos do Tesouro! Com isso, o benefício por funcionário atinge R$ 55.048! Alegam alguns que a mesquinhez nos dividendos do Tesouro se deveu à preocupação da empresa de maximizar investimentos. Isso é desmentido pelos dados acima. Os lucros sonegados ao Tesouro serviram mais para aumentar os benefícios dos funcionários que para financiar investimentos. Além disso, o correto seria pagar dividendos integrais ao Tesouro para que este, como acionista, definisse as prioridades de investimento, submetendo-as ao controle orçamentário do Congresso. Prioridade de investimento é opção política e não arbítrio tecnocrático.
A Vale tem mais parecença com um instituto assistencial que criou uma aristocracia burocrática do que com um complexo industrial a serviço dos acionistas. Computados seus 55 anos de existência, os dividendos se reduzem a proporções microscópicas. Ter tolerado essa vergonhosa situação é um crime de responsabilidade que poderia ser imputado aos ministros da Fazenda, aos quais caberia cuidar mais diligentemente dos recursos dos contribuintes!
A Vale do Rio Doce deveria ter sido privatizada muito antes. Em 1990, por exemplo, ano em que foi votada a Lei de Desestatização, que devemos a uma corajosa iniciativa do presidente Fernando Collor, pela qual muitos pecados lhe serão perdoados. Naquela ocasião foi derrotado meu ponto de vista de que a complicada liturgia de avaliação por duas consultorias só deveria ser exigida no caso de empresas sem tradição de Bolsa. A Vale do Rio Doce e a Light-Rio, que, por terem milhões de acionistas privados, eram avaliadas diariamente na Bolsa por dezenas de bancos de investimento e fundos de pensão, poderiam ser rapidamente vendidas pela melhor oferta, em leilão especial de transferência de controle. A avaliação da Bolsa, feita por quem está apostando seu dinheiro, é muito mais realista que os devaneios dos funcionários ou os cálculos de consultorias.
FHC hesitou muito em incluir a Vale na lista de privatização e só se decidiu a fazê-lo em fins de 1995. Com isso o país perdeu tempo e dinheiro, como se pode facilmente demonstrar. Em 1995 o patrimônio líquido da empresa atingiu R$ 11.704 milhões, dos quais R$ 5.970 corresponderiam às ações do Tesouro. Nesse ano os juros reais de rolagem da dívida pública interna foram absurdamente altos -33%. Se aplicados os recursos de privatização no cancelamento da dívida, teríamos economizado R$ 1.970 milhões, ou seja, 38 vezes os dividendos percebidos pelo Tesouro naquele ano!
Costumo dizer que o subdesenvolvimento brasileiro é devido principalmente a duas doenças: "esquizofrenia" no tocante ao conceito de liberdade e "aritmética masoquista". Protestamos violentamente contra a cassação de direitos políticos e aceitamos mansamente a cassação de direitos econômicos que nos é imposta pelos dinossauros estatais.
A "aritmética masoquista" consiste em mantermos uma horda de estatais que pouco ou nada rendem para o Tesouro, enquanto este paga juros reais exorbitantes (33% em 1995 e 17% em 1996) para rolar sua dívida. Isso cria um piso de juros que representa insuportável carga ao setor privado, dificultando a sobrevivência de pequenas e médias empresas e condenando o país a um crescimento medíocre.
Há quem pense que por meio de "contratos de gestão" se corrigiriam os abusos paternalistas das estatais. Novo engano! O contrato de gestão da Vale com a Sest foi feito em 1992. Que sucedeu? O quadro de pessoal foi reduzido em 11%, a receita líquida aumentou em 24%, mas isso reverteu não em benefício da empresa e sim do funcionário, pois a despesa média anual por funcionário subiu nada menos que 73%!
Só há duas explicações para o fato de que políticos jurássicos, estatolatras e bispos se oponham à privatização. A primeira é que gostam da aritmética masoquista e não sabem (ou não querem) analisar balanços. A segunda é que possuem uma visão romântica e obsoleta de "atividade estratégica". A importância estratégica não depende da natureza do acionista e sim da eficiência operacional. Na era pós-industrial -a sociedade do conhecimento-, o valor estratégico não está nas "commodities" como ferro, alumínio e ouro. Para melhorar sua posição estratégica o Brasil precisa de duas coisas: ampliar a escolaridade da força de trabalho e aumentar sua capacidade de poupança. O resto é fetichismo de produto. O Estado moderno não precisa ser legista de cadáveres geológicos. Nem vendedor de celulose e caolim.
O escândalo de hoje não é a privatização da Vale do Rio Doce. O escândalo é não a termos privatizado antes...

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