São Paulo, domingo, 13 de abril de 1997
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HISTÓRIA

NICOLAU SEVCENKO
ESPECIAL PARA A FOLHA

. Nomadismo
No início, nosso habitat eram as árvores. Mudanças climáticas bruscas alteraram as condições ambientais, forçaram nossos ancestrais a descer e buscar a sobrevivência no solo, onde fosse possível, tão longe quanto necessário. Desde então, eles se puseram em marcha e se espalharam por toda a Terra. A evolução fez da nossa uma espécie nômade. Alguns grupos, porém, se separaram das comunidades errantes, colonizaram terras férteis, sedentarizaram, ergueram muralhas e montaram exércitos.
Desde então, nossa espécie se dividiu numa luta matricida. A vantagem da tecnologia fez com que os filhos de Caim prevalecessem sobre os de Abel. Eles colonizaram todo o planeta, caçaram os animais e seus irmãos itinerantes, e as muralhas se estenderam por toda parte.
Paradoxalmente, quanto mais a tecnologia se complicou, quanto mais a fortaleza cresceu, mais rachaduras surgiram, mais vãos e mais infiltrações. Por meio delas os nômades reapareceram e aprenderam a colonizar a tecnologia. Como os tártaros outrora cruzavam as estepes da Ásia, os novos nômades esquadrinham as mais remotas fronteiras eletrônicas. A grande Babilônia estremece. Migrações nômades são cíclicas, não lineares. Retrofuturismo. Em vez de Apocalipse, o retorno do caos inspirador. De volta à estrada.

. Paganismo
A convicção básica das várias formas de paganismo é a idéia de que todos os seres, todos os elementos e todas as forças da natureza fazem parte de um sistema único, totalmente integrado, em fluxo permanente, em que nada e ninguém é mais importante ou superior a qualquer outra presença ou manifestação. Quebre uma pedra, corte uma árvore ou sacrifique um animal e você cria uma dívida para com a totalidade do cosmos, que, de algum modo, você terá que compensar, sob pena de perder a sintonia com a pulsação simultânea do todo, tornando-se poluído e contaminando o mundo com a sua profanação.
Não se desespere, você não está sozinho, se você não sabe como compensar o dano que causou, consulte um xamã. O xamã vive uma vida reservada, mais próxima dos ciclos da natureza, é uma criatura intermediária, parte-membro da comunidade, parte-membro do mundo animal, parte-membro do mundo vegetal, parte-membro do outro mundo. Ele não fala, ele dança. É a sua dança, a cadência, o compasso coletivo que manifestam e repõem a harmonia dos fluxos cósmicos.
A teoria de gaia, em biologia, a teoria da ordem extrínseca, em física, a teoria do caos, em matemática, restituíram, nesse fim de século, a concepção de uma totalidade cósmica intimamente conexa, agitada por fluxos em padrões rítmicos complexos. Tecnopaganismo. Neoxamanismo. A dança voltou a ser a forma suprema de comunicação, a palpitação da vida, a restauração do erotismo total. De volta ao ritmo.

. Orfismo
Filho de Apolo e sacerdote de Dionísio, Orfeu era um músico tão prodigioso, que, quando cantava e tocava sua lira, todas as mulheres e homens, todos os animais, árvores, plantas e até as pedras acorriam, irresistivelmente atraídos, compondo um círculo ao seu redor, fascinados pela melodia. Ele seduzia mesmo deuses, monstros e criaturas infernais com sua música, chegando, inclusive, a tentar resgatar sua amada, Eurídice, do reino dos mortos. O mito de Orfeu se tornou um dos temas mais caros da cultura ocidental, glosado por Hesíodo, Virgílio, pelos renascentistas, românticos, simbolistas e surrealistas.
Em particular, no processo de criação da arte moderna, em Paris, no início do século, se articulou o grupo, ao redor do poeta Apollinaire e do pintor Léger, que criou a chamada estética orfista. A idéia básica era a de que as religiões e políticas oficiais reprimiam o apelo dos estímulos sensoriais, impondo uma cultura opaca, cinzenta e lógica. Era chegada a hora de reacordar os sentidos. Mais que isso, de acordo com o mito original, era o momento de resgatar o princípio de que a emancipação do espírito só poderia decorrer de rituais de catarse e êxtase coletivos. O que repôs o desejo na arena política.
No contexto do populismo do século 20, ele se tornou, porém, o instrumento decisivo dos mecanismos de cooptação, inclusão e integração das massas urbanas pela propaganda e políticas culturais. A reação veio com o Neo-orfismo.
Reencontrar a comunhão dos sentidos e a força do desejo numa dimensão fluida, difusa, lúdica e metamórfica, desprendida das disciplinas do Estado, do mercado e da padronização das modas. Os novos recursos de edição musical eletrônica propiciaram os meios. A lira cibernética congregando os renegados. De volta ao êxtase.

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