São Paulo, segunda-feira, 14 de abril de 1997
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Da Solidão e Tomates

GUSTAVO IOSCHPE
ESPECIAL PARA A FOLHA

"Solidão, apavora. Tudo demorando em ser tão ruim." Só mesmo Caetano Veloso pra descrever esse sentimento ignóbil de forma tão poética.
Nos Estados Unidos, onde o "modus vivendi" desta nova era (tudo rápido, eficiente e impessoal) se personifica, a solidão é impressionantemente devastadora. Não há disposição para qualquer tipo de relação que envolva qualquer tipo de esforço.
Os homens e suas emoções são regidos por uma lógica de mercado. Só os menos atilados ainda não se deram conta de que são peças desnecessárias e descartáveis de uma engrenagem suprapessoal.
Aqui já se passou do estado em que os solitários falavam sozinhos. Hoje eles falam com qualquer um, mesmo que desconhecido. Outro dia fui a uma loja para comprar móveis e fiquei espantado com a idiotice de dar um nome a cada objeto. A mesa de jantar era Sue, as cadeiras, Pietro, o abajur era Chris e por aí afora. Estava olhando uma escrivaninha quando uma moça se aproximou e perguntou se eu ia levar o Jimmy.
- Jimmy? perguntei, meio atarantado.
- Sim, essa mesa. Olha, o Jimmy é ótimo, tô com o meu há dois anos. Também comprei a Sally, aquela cadeira ali, e os dois fecham direitinho. Um amor. Leva que é uma boa.
- Ah, legal. Obrigado, disse eu antes de fugir dessa pirada.
Só fui entender que se criara um certo vínculo entre nós (o Jimmy, que eu acabei levando) muito mais tarde, quando notei que acontecia o mesmo fenômeno com a senhora que servia salada no refeitório da universidade. Todo dia, eu pegava um hambúrguer e levava até o local da salada. Todo dia se repetia o mesmo diálogo:
- Oi, o que você vai querer? - perguntava ela, solícita em suas luvas de plástico e tela no cabelo, como se servir um tomate fosse como operar um coração.
- Eu queria um tomate em cima do hambúrguer.
- Um tomate?
- Sim.
- Só um?
- Só.
- Em cima do hambúrguer?
- É.
- Isso é tudo?
- Sim.
- Tchau. Tenha um bom dia, ela dizia, encerrando o nosso monólogo a dois.
Até eu entender que aquela mulher estava desesperada por falar com alguém, eu não conseguia entender como é que alguém tinha de fazer quatro perguntas pra colocar um tomate em cima de um hambúrguer. Ainda por cima, ela ficava mexendo na bacia dos tomates -todos iguais- pra achar a fatia mais bonita (igualmente agrotoxicada e sem gosto como as demais) e fazer aquela interação durar o maior tempo possível. Mas agora entendo. Solidão. Apavora. Tudo demorando em ser tão ruim.
No dia seguinte, pensei: "Quando ela me perguntar de novo, digo: a senhora conhece um compositor brasileiro, Caetano? Pois então, ele tem uma música assim e assado, e no fim a letra ensina que cantando a tristeza vai embora. Quem sabe, de repente...?"
Eu me dirijo estóico ao balcão da salada. Abro o hambúrguer, olho-a nos olhos. Ela fuxica a bacia dos tomates.
Eu digo que quero o tomate em cima do hambúrguer. Ela pergunta se só um. Levanto o dedo, como que preparando uma frase inteligente:
- A senhora já ouviu falar de um compositor...
- Em cima do hambúrguer? Ela me interrompe.
- É. Mas...
- Você estava dizendo algo?
- Eu? Não, não, nada. Deixa pra lá.

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