São Paulo, sexta-feira, 18 de abril de 1997
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"Bob Fields" é um injustiçado

GILSON SCHWARTZ
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Tenho um amigo, que conhece de perto (e muitas vezes por dentro) as engrenagens da república brasileira. Ele me garante, de pés juntos e em "off", que Roberto Campos não é, nunca foi corrupto, não tirou vantagens financeiras para si próprio apesar da intensa participação na ditadura militar.
Paro para refletir. Roberto Campos tornou-se uma figura emblemática, membro de uma espécie de Sinédrio ou Conselho de Anciãos do Brasil, uma figura como até bem pouco tempo atrás era Darcy Ribeiro ou como foram um Simonsen, um Sérgio Buarque de Holanda ou como é, ainda, Barbosa Lima Sobrinho.
Sobrinho e Campos, nas suas avançadas idades, representam hoje a memória viva da herança político-cultural brasileira, uma herança que passa por Tiradentes, cuja celebração aliás é tão próxima do aniversário de Roberto Campos. Memória dividida, senão fratricida.
Campos tem pelo menos duas características que foram comuns em grandes brasileiros deste século: a conversão ideológica conservadora e a religiosidade de suas idéias, mesmo as econômicas.
A conversão, no caso de Roberto Campos, foi de um homem de planejamento que, numa época em que a esquerda até ocupava fatias do poder, aproximava-se da esquerda, para um louva-mercado depois que saiu do governo. Passando pela ocupação de cargos de alta confiança, incluindo-se o ministério e uma embaixada, junto a um grupo de militares que promoveu o período mais estatizante da história brasileira contemporânea. Depois, com a extrema-direita no poder, Campos também se acomodou.
Há quem pretenda celebrar a "vitória final" das idéias ultraliberais de Roberto Campos: afinal, é uma certa parcela da esquerda que está hoje no poder e luta pela privatização da Companhia Vale do Rio Doce. Mas é o próprio senador que não se deixa, não se permite o sabor da vitória, como que numa penitência auto-imposta.
Pois é o mesmo governo FHC que, como insiste nelsonrodrigueanamente Campos em seus artigos na Folha, defende a sobrevivência de dinossauros como a Petrossauro (a empresa estatal Petróleos Brasileiros S.A.) e flerta perigosamente com políticas industriais ativas, num estilo japonês mais à la João Paulo dos Reis Velloso. E parece uma lady errante no que se refere ao tema "reforma do Estado".
Roberto Campos conhece o assunto de perto. Entre 1964 e 1966, as reformas da dupla Campos-Bulhões prepararam as engrenagens que financiariam o Estado militarizado brasileiro. Fizeram, com o Congresso fechado, uma reforma fiscal que lançou as bases do ativismo keynesiano dos BNHs e outros "projetos de integração nacional". Estado forte significava não apenas força das armas, mas força fiscal, capacidade de arrecadar mais e com fortes instituições financeiras públicas fomentando o desenvolvimento.
Hoje, Campos está entre os que reclamam da lentidão reformista do governo FHC. Mas vale a pena lembrar que a lentidão, em parte, explica-se pelas conhecidas dificuldades de remoção do "entulho autoritário".
Outra conclusão importante a partir da biografia de Roberto Campos é que o Brasil tem uma linhagem de raríssimos paralelos internacionais, no século 20, de planejadores econômicos. O próprio Velloso, Celso Furtado, Campos mostram que havia uma "velha guarda" obsessivamente ocupada com a questão do desenvolvimento econômico.
Obsessão: essa a palavra-chave para decifrar esses vôos de pensamento e ação política, nessa época com um panteão de realizadores como Roberto Campos.
Ambientados na alta cultura contemporânea, dos dois lados do Atlântico, criativos no desenho de conceitos e de instituições, sempre em guerra contra tudo e todos, nessa "velha guarda" muitos se entregaram a verdadeiras obsessões políticas, obsessões de deitar baba pela gravata, como diria o obcecado-mor Nelson Rodrigues. Nessas obsessões, uma mistura de fé e visões do futuro do Brasil.
O problema maior não é Roberto Campos estar certo ou errado, mas sim existirem poucos do seu gênero na sociedade brasileira. Ele sem dúvida acertou e, talvez arrependido, antecipou-se a muita gente com relação aos riscos de confiar demais na clarividência do Leviatã ou na eficácia do planejamento econômico.
Mas basta olhar a marcha dos sem-terra sobre Brasília para perceber que em muitas outras coisas, fundamentais, Campos e sua geração erraram catastroficamente. Hoje está claro que o desenvolvimento econômico sem uma "âncora social" não passa de um beco sem saída, na melhor das hipóteses.
Infelizmente, o debate atual sobre política econômica e sobre o futuro do Brasil chegou a um ponto de tecnocratização que nem o mais delirante planejador poderia prever. Isso em plena democracia. "Bob Fields" é mesmo um injustiçado.

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