São Paulo, sexta-feira, 18 de abril de 1997
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A marcha dos números

JANIO DE FREITAS

Em mais uma demonstração de sua incompatibilidade com o interesse público, as televisões brasileiras deixaram de transmitir ao vivo o que as rádios, quase todas associadas às mesmas TVs, definiam como o maior acontecimento público já havido em Brasília. Grandiosidade física, social e política que as próprias televisões reconheceram nos seus sintéticos telejornais noturnos.
O grande democrata que está na Presidência da República não desejava, por não lhe convir politicamente, que os cidadãos em geral pudessem ter a informação visual -o testemunho típico da era eletrônica- de um acontecimento que convergiu de todo o país para atestar, no território mesmo do poder, a ineficiência administrativa do governo, uma grave derrota de Fernando Henrique Cardoso e a falsidade a que se reduziram suas promessas e compromissos de candidato.
O encontro apoteótico da marcha dos sem-terra com a capital da República, dando enfim sentido àqueles espaços monumentosos, encarnou uma denúncia também do sistema de comunicação vigente no Brasil. Para ficarmos só no ocidente, mesmo as TVs estatais européias, e são muitas, têm liberdade não só de informação, mas de crítica aos governos e governantes. São entendidas como propriedades do Estado e não como instrumentos de governantes.
Nos Estados Unidos, no Canadá, os canais são concessões como são no Brasil, mas daí não resultam condicionamentos nem de longe parecidos com os existentes aqui. É a diferença entre instituições democráticas e o que o presidente do Supremo Tribunal Federal, Sepúlveda Pertence, chama de "ditadura da maioria" política.
A marcha não ficou esquecida, porém. Foi lembrada, claro, à maneira televisiva habitual: enquanto os sem-terra e os aderentes chegavam à Esplanada dos Ministérios, Fernando Henrique Cardoso punha a imaginação em atividade, naturalmente pela Rede Globo, para propagar suas realizações não percebidas pelos sem-terra: já aplicou a reforma agrária em território do tamanho da Bélgica, 3 milhões de hectares; já fez mais do que todos os governos anteriores; já fez -para encurtar, já fez tudo.
Por alguma razão irrelevante, dá-se que os números de assentamentos e outros feitos apresentados pelo governo estão, na melhor hipótese, três vezes acima dos levantamentos comprováveis. E são muito inferiores ao realizado por Sarney e até nos dois anos anti-sociais de Collor.
Os números em que Fernando Henrique pode apresentar-se, com veracidade, como recordista absoluto, não foram por ele citados: os 440 conflitos rurais em 95 e os 520 em 96 não têm precedentes. Assim como são recorde absoluto os 57 assassinatos de 96. Todos, é óbvio, impunes -o que é outro recorde.

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