São Paulo, sexta-feira, 18 de abril de 1997
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Descharnes prepara a volta de Dalí

CELSO FIORAVANTE

CELSO FIORAVANTE; CRISTINA GRILLO
DA REPORTAGEM LOCAL

Durante cerca de 40 anos, o nome do pintor espanhol Salvador Dalí (1904-1989) esteve ligado a duas pessoas. De um lado, Gala, sua mulher e inspiradora. Do outro, o francês Robert Descharnes, seu conselheiro e secretário.
Gala morreu em 1982 e foi acompanhada por Dalí, sete anos depois. Antes, porém, deixou para Descharnes o controle dos direitos de reprodução e uso de sua imagem no mundo inteiro até 2004, quando ele completaria 100 anos. Um negócio que movimenta cerca de US$ 3 milhões por ano.
Descharnes está no Brasil esta semana e disse em entrevista à Folha que veio "sentir o clima" e fazer contatos para uma futura mostra no país, que visita pela primeira vez.
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Folha - O que o sr. vem realmente fazer no Brasil?
Robert Descharnes - Eu não venho somente ao Brasil, mas à América do Sul, para ver um pouco a situação de Dalí em alguns países. Na verdade, procuro duas coisas. Uma é conhecer a situação atual da imagem de Salvador Dalí. A outra é recuperar antigas relações de Dalí. Ele manteve contatos com muitas pessoas no Chile, na Argentina e no Brasil. Encontrou Ciccillo Matarazzo, por exemplo.
Folha - Reencontrar essas relações serviriam para viabilizar mostras por aqui?
Descharnes - Não exatamente. Eu sou um historiador da vida da Dalí, escrevi diversos livros. Não fui apenas o secretário de Dalí, como muitos falam.
Eu conheci Dalí no inverno de 1951, e, até os anos 80, minha colaboração foi de ordem artística e cultural. Mas, no final dos anos 80, ele me pediu para ajudá-lo e, então, me tornei colaborador em várias outras atividades.
Na Argentina, algumas famílias compraram Dalís nos anos 30. Em Santiago do Chile, a família do marquês de Cuevas, que foi o patrocinador de todos os balés de Dalí em Nova York, possui muitas coisas de Dalí.
Folha - Mas existe a intenção de se fazer mostras no Brasil?
Descharnes - Gostaríamos muito. Ouvi falar que o Brasil está muito aberto para as artes, como foi possível ver com a mostra de Rodin. Mas o que me interessa agora é mostrar a personalidade de Dalí, um homem prodigioso. Não foi apenas um pintor.
Quero mostrar objetos, esculturas, fotografias, documentos... Hoje é muito difícil reunir grandes obras de Dalí, pois não é possível fazer uma mostra apenas para um endereço e os museus não emprestam suas obras-primas por muito tempo. Fica muito complicado.
Hoje é mais importante fazer as novas gerações conhecerem Dalí. Estamos preparando uma grande mostra para o Japão, com a colaboração de grandes empresas de tecnologia de vanguarda, para dar ao público uma apresentação mais interessante.
Folha - Você acredita que Dalí e multimídia formam um bom par?
Descharnes - Ele foi um dos artistas mais apaixonados pelas descobertas científicas, e quero mostrar isso nas mostras. Todas as novas tecnologias o fascinavam.
Mesmo no final de sua vida, ele se comunicava com o físico Stephen Hawking, que se ocupava da teoria dos buracos negros e de tudo o que apaixonava Dalí.
Folha - E o que falta para o Brasil ter uma grande mostra de Dalí?
Descharnes - Eu quero muito fazer alguma coisa aqui com os meus conhecimentos de Dalí. Estou fazendo essa viagem para ver, manter contatos e "sentir o clima" brasileiro. Nesse momento, temos muito interesse que uma exposição muito didática seja apresentada aqui. Mas ainda não é possível dizer em quais cidades ou com quais obras.
Folha - O sr. conviveu com Dalí durante 40 anos. O sr. não possui obras, fotografias e documentação para uma grande mostra?
Descharnes - Tenho algumas obras, não sou um colecionador importante, mas conheço muitas pessoas. Tenho um amigo que possui 42 figurinos de um balé de Dalí, praticamente inéditos. Mas o problema não é esse. O problema é o tempo e a organização da mostra.
Folha - O Japão é o país mais aficionado por Dalí?
Descharnes - Eles amam muito Dalí. O Japão é o país que melhor trabalhou contra a falsificação de Dalís. Eles são muito organizados e sabem controlar um mercado. Nos EUA isso é mais difícil.
Antes da América do Sul, eu estava em Nova York para decidir a situação de 70 mil Dalís falsos que estão sob processo. Fui para decidir o que será feito com eles. Procuramos o caminho entre destruí-los e conservar sua memória.
Muitos colecionadores têm Dalís falsos e por isso não podemos destruir todos. Temos que conservá-los, talvez em Washington, em uma organização oficial, para que os colecionadores, especialistas e juízes possam consultá-los. Isso é muito importante.
Folha - O Brasil ainda apresenta problemas com falsos?
Descharnes - Pouco. A situação melhorou muito nos últimos anos, pois não há mais fontes de falsos. Os dois grandes impressores de falsos, da França e dos EUA, estão mortos. Mas, na França, ainda temos cerca de 100 mil falsos, em um processo que dura de 1988.
Folha - Existe um catálogo raisonnée de Dalí?
Descharnes - Não. Escrevi um grande livro, com 1.700 reproduções, mas ainda trabalho no catálogo completo de pinturas.
Folha - Dalí pintou muito?
Descharnes - Cataloguei mais de mil, mas não passam de 2.000. Dalí realizou muitos retratos, principalmente nos EUA, que não são conhecidos, pois nunca entraram em circulação.
Folha - Em 1994, o sr. teve problemas com o governo espanhol, que questionou os seus direitos sobre a imagem de Dalí?
Descharnes - Tive problemas com alguns políticos de um determinado governo espanhol, socialista, que, junto com alguns membros da Fundação Gala-Dalí, questionaram meus direitos.
Eles não se conformavam de Dalí ter passado para um francês os direitos para o controle de sua imagem até o ano de 2004, que é quando ele completaria 100 anos. Eles se esquecem que, mais que um pintor espanhol, Dalí era sobretudo universal.
Certas pessoas fizeram mais mal à obra de Dalí que os falsários, mas não vai ser um grupo de políticos que vai mudar a história.
Eu sempre estive sozinho no combate à falsificação. Essa gente "fascinante" de Figueras (cidade natal de Dalí e sede da Fundação Gala-Dalí) nunca se preocupou com isso.
Folha - O que a sua empresa, a Demart, faz?
Descharnes - Devemos proteger a imagem de Dalí e de sua obra no mundo inteiro. E isso custa muito. Devemos proteger seus direitos por causa do desenvolvimento do mercado de arte como um negócio.
Folha - Quanto dinheiro se movimenta com a imagem de Dalí?
Descharnes - Cerca de US$ 3 milhões. Mas hoje é necessário tomar cuidado para que a obra do artista não se transforme em um dinheiro incoerente. É preciso não esquecer que o valor artístico está sempre ligado à personalidade de um criador.
Essa é uma questão que se complica muito, pois as relações são sempre intermediadas pela mídia, principalmente no caso de Dalí, que é um artista muito público. A mídia pode transformar algo em uma realidade que não existe.

Colaborou Cristina Grillo, da Sucursal do Rio.

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