São Paulo, sexta-feira, 18 de abril de 1997
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Ricardo 3º discute 'herói-vilão' elisabetano

HAROLD BLOOM
ESPECIAL PARA A FOLHA

"Ora, eu, nesses tempos sem força, de cantoria e paz,/ Não tenho outro prazer para encher as horas/ Exceto ver minha própria sombra ao sol/ E improvisar canções sobre a minha deformidade./ E assim, já que não posso ter papel de amante/ Para me entreter nesses dias de palavrório fino/ Estou decidido a ser o pior bandido/ Odiando o quanto posso os prazeres e os dias." ("Ricardo 3º", Ato 1, cena 1).
A ferocidade inicial de Ricardo, a essa altura ainda só duque de Gloucester, é apenas mais um ponto de partida para o desenvolvimento da figura do "herói-vilão" elisabetano; mas parece transformar inteiramente os seus precursores Tamburlaine e Barrabás nas peças de Marlowe (1564-1593).
O prazer de Ricardo em sua própria audácia, um prazer tão consciente de si, deixa-se apanhar pelo sentido do que significa ver a própria sombra deformada ao sol.
Já estamos mais perto não só de Edmundo e Iago (em "Rei Lear" e "Otelo"), mas especialmente do sublime Ludovico de Webster (1578-1632), na "Duquesa de Malfi": "Fui eu quem pintou essa cena noturna -e foi o melhor que já fiz".
Exceto Iago, ninguém vai mais longe nessa modalidade de desespero do que o Bosola de Webster (Ato 5, cena 4): 'Recuso-me a imitar seja o que for:/ Coisa gloriosa ou abjeta. Serei eu mesmo o meu modelo./ Em frente, em frente -e não esquece de representar,/ Contra o vazio do silêncio, o peso que te cabe'. Iago vai ainda mais longe nessa negação da representação, porque escolhe precisamente o silêncio: 'Não me pergunta nada: o que já sabes, sabes:/ De agora em diante, não direi mais palavra'. ('Otelo', Ato 5, cena 2)
Iago não é um "herói-vilão" e nenhuma mudança de ponto de vista é capaz de alterar esse fato. Na prática, poderíamos dizer que o "herói-vilão" autêntico em Shakespeare é Hamlet, mas platéia alguma concordaria com isso.
Macbeth seria uma escolha mais justificada, mas o cosmos da peça está longe demais de qualquer noção tradicional de representação para que o termo "herói-vilão" possa manter sua coerência paradoxal.
Ricardo 3º e Edmundo parecem ser mesmo os personagens em quem se inspiram Webster e os demais dramaturgos da época, mas Edmundo é uma figura "inquietantemente estranha" demais, esplêndida demais para ser copiada. Isso nos deixa com Ricardo:
"Mulher alguma foi cortejada assim?/ Mulher alguma foi conquistada assim?/ Hei de tê-la, mas não há por que mantê-la muito tempo/ O quê? Eu, que matei seu marido e seu pai,/ Carregá-la, com o coração explodindo de ódio,/ Com maldições da língua, lágrimas nos olhos/ As testemunhas sangrentas de meu ódio ali ao lado,/ Tendo Deus, a consciência dela e tudo o mais contra mim,/ E eu sem amigos para me ajudar na causa,/ Nada senão o diabo sem disfarce e a falsidade indisfarçável? (...)"
"Juro por minha vida que ela (ao contrário de mim)/ Pensa em mim como um homem admirável e fino./ Tenho de me comprar logo um espelho/ E contratar uma ou duas dúzias de alfaiates/ Para estudar como vestir meu corpo:/ Já que estou crescendo um pouco em minha própria estima,/ O gasto relativo vale a pena./ Mas antes tenho de fazer o finado se revirar na cova/ E então voltar chorando ao meu amor? Brilha no céu, ó sol, até que eu compre um espelho,/ Para que eu veja minha sombra no caminho."
A única satisfação de Ricardo, antes disso, era "ver minha própria sombra ao sol/ E improvisar canções sobre a minha deformidade".
Seu prazer feroz com o sucesso de suas manipulações retóricas transforma a primeira imagem num comando exultante: "Brilha no céu, ó sol, até que eu compre um espelho,/ Para que eu veja minha sombra no caminho".
Tal transformação constitui-se numa fórmula para interpretar o personagem do "herói-vilão" jacobino e seus descendentes: o Satã de Milton no "Paraíso Perdido", o Poeta de Shelley em "Alastor", o Oswald de Wordsworth em "The Borderes", Manfredo e Caim nos poemas de Byron, o "Childe Roland" de Robert Browning, o Ulysses de Tennyson, o Capitão Ahab de Melville em "Moby Dick", o Chillingworth de Hawthorne na "Letra Escarlate", e assim por diante, até o Strike de Nathanael West em "Miss Lonelyhearts", com quem talvez se encerre a tradição.
O "herói-vilão" obsessivo, manipulador, altamente consciente de si -seja um conspirador maquiavélico ou, como mais tarde, um peregrino idealista, bem-sucedido ou não- transporta-se da condição de sofredor passivo de sua própria deformação moral e/ou física até a de um ativíssimo melodramaturgo.
Ao invés de se postar à luz da natureza para observar a própria sombra, sendo forçado, então, a eleger sua deformidade como tema, ele agora dá ordem à natureza para que projete sua luz sobre o espelho da representação -de forma tal que a sombra só será visível por um instante, enquanto ele avança para o triunfo de sua vontade sobre a de todo o mundo.

Tradução de Arthur Nestrovski

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