São Paulo, sexta-feira, 18 de abril de 1997
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Direitos humanos não têm fronteiras

HÉLIO BICUDO

No Brasil, a proteção dos direitos humanos -que até a última década se fazia pelos órgãos internos, principalmente não-governamentais, e que passou ao Ministério Público, com amparo nas comissões estaduais e municipais de direitos humanos, até certo ponto coordenadas pela Comissão de Direitos Humanos da Câmara- foi ganhando espaços a nível nacional e internacional, diante da unidade conceitual dos direitos humanos.
A Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, como se tem afirmado, foi o marco inicial de um movimento que prossegue até hoje, justamente na linha de sua proteção além das fronteiras dos Estados.
Dessa data até nossos dias, "os instrumentos voltados à salvaguarda dos direitos humanos formam um 'corpus' de regras bastante complexo, origens diversas (Nações Unidas, agências especializadas, organizações regionais), de diferentes âmbitos de aplicação (global e regional), distintos também quanto a seus destinatários ou beneficiários, e, significativamente, de conteúdo, força e efeitos jurídicos desiguais ou variáveis (desde declarações até convenções ratificadas) e de órgãos exercendo funções também distintas (como informação, instrução, conciliação e tomada de decisão).
"São igualmente distintas as técnicas de controle e supervisão (por exemplo, reclamações ou petições de diversas modalidades, relatórios periódicos, investigações)" (cf. Cançado Trindade, "A Proteção Internacional dos Direitos Humanos", Saraiva, 1991, pág. 3).
A despeito de sua diversidade, prossegue o autor, constitui traço distintivo do "rationale" dos tratados e instrumentos de direitos humanos o de que se dirigem à proteção de seres humanos e de que a solução de reclamações nesse campo deve assim ser guiada e baixar-se no respeito aos direitos humanos, pode-se dizer, "in genere".
Pouco e pouco, foi-se superando o entendimento de que a proteção dos direitos humanos se esgota na atuação dos Estados, no que Cançado Trindade denomina de "competência nacional exclusiva", que se equipara ao chamado "domínio reservado do Estado".
Segundo o autor, essa linha de pensamento não passa de "um reflexo, manifestação ou particularização da própria noção de soberania, inteiramente inadequada ao plano das relações internacionais, porquanto originalmente concebida, tendo em mente o Estado 'in abstracto' (e não em suas relações com outros Estados), e como expressão de um poder interno, de uma supremacia própria de um ordenamento de subordinação, claramente distinto do ordenamento internacional, de coordenação e cooperação, em que todos os Estados são, ademais, de independentes, juridicamente iguais".
Daí, conclui: "Não há como sustentar que a proteção dos direitos humanos recairia sob o chamado 'domínio reservado do Estado', como pretendiam certos círculos há cerca de três ou quatro décadas". Em consequência, no processo da atuação, e não apenas de interpretação internacional dos documentos internacionais -como dos tratados em geral-, não deve haver e, em verdade, não tem havido lugar para a invocação do dogma da soberania.
O mesmo Cançado Trindade, em parecer do Ministério das Relações Exteriores (parecer MRE - CJ/01), aprecia com grande acuidade a problemática que quer impor um conceito já ultrapassado de soberania aos princípios universalmente aceitos de proteção dos direitos humanos, para afirmar que "não há razões de cunho verdadeiramente jurídico que justifiquem a posição estática e mecânica de não-adesão aos tratados relativos à proteção internacional dos direitos humanos". A rigor, não há motivos para discutir sobre a violabilidade de adesão a eles, a não ser conservar a atitude inviolabilista que nos últimos anos e até o presente tem sido mantida pelo Brasil.
Na verdade, na apreciação do desenvolvimento histórico da proteção internacional dos direitos humanos, verifica-se a gradual superação de barreiras, na compreensão de que a proteção dos direitos básicos da pessoa humana não se esgota na atuação do Estado, na pretensa e demonstrável "competência nacional exclusiva".
De conseguinte, passa-se a admitir que normas do direito internacional se dirijam diretamente aos indivíduos como pessoas protegidas em nível internacional, não se podendo excluí-las do acesso aos tribunais internacionais.
Quando a Constituição brasileira propugna pela criação de um tribunal internacional para a proteção dos direitos humanos, sem qualquer distinção, está evidente que se submeterá à sua jurisdição. Ora, esse Tribunal ou tribunais já existem: as Cortes Internacionais de Haia e Interamericana. Portanto, não há como sair pela tangente e, segundo os interesses do Estado, escapar pela porta esquiva de um conceito de soberania totalmente ultrapassado.

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