São Paulo, sábado, 26 de abril de 1997
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Permissividade preterdolosa

WALTER CENEVIVA
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

A decisão final sobre o destino dos jovens que puseram fogo no índio pataxó demorará alguns anos, com a série de recursos assegurados à defesa. A demora não é só brasileira, mas característica da dificuldade de julgamento dos delitos mais notórios.
Antes disso haverá medidas adotadas pelos defensores, envolvendo alguns ou todos os acusados. Tentarei esclarecer o leitor sobre o que pode acontecer no processo.
Inúmeras teorias científicas tratam da culpa e do dolo na ação criminosa, mas a idéia essencial está em saber se o acusado quis ou não quis o resultado. Assim, o homicídio pode ser doloso (os rapazes quiseram o resultado ou assumiram o risco de produzi-lo) ou culposo (agiram com imprudência, negligência ou imperícia).
São vários os envolvidos na morte do índio. Poderá haver gradações diferentes para as penas, pois um ou alguns deles podem ter concorrido de modo mais direto para o lamentável resultado. Homicídio (que a mídia e a linguagem comum geralmente tratam de assassinato) consiste em matar alguém, com ou sem intenção. Apesar da versão segundo a qual eles compraram o álcool para jogar na vítima, nada sugere que sua intenção tenha sido a de lhe provocar a morte. Se tal circunstância favorável vier a ser comprovada, poderá ocorrer o enquadramento do delito como preterdoloso. Essa palavra estranha define uma ação em que se misturam o dolo e a culpa. Ou seja, os moços teriam querido um resultado, punível pela lei penal, mas chegaram a outro, que não desejavam, mas acabou surgindo.
O leitor precisa estar atento para uma circunstância relevante: a vítima não morreu na hora. Sofreu lesão corporal gravíssima, com a queimadura quase integral do corpo, seguida de morte. Se as lesões provocam o falecimento da vítima e as circunstâncias evidenciam que o acusado não quis o resultado nem assumiu o risco de produzi-lo, a pena é de reclusão de 4 a 12 anos. Em avaliação genérica, do ponto de vista jurídico, seria o melhor destino imaginável para os acusados.
Tratou-se, porém, de um concurso de pessoas. Em conjunto concorreram para que o crime acontecesse, embora tivessem condutas diversas. Cada acusado será inocentado ou responsabilizado, na medida da sua culpabilidade comprovada.
O julgamento levará em conta as circunstâncias agravantes (o uso do fogo e o motivo torpe, por exemplo) e as atenuantes (os que têm menos de 21 anos) para determinar a pena-base, cuja finalidade social se destina tanto à reprovação do delito praticado quanto à prevenção de novos crimes. Consideradas as causas de diminuição e de aumento, as penas serão fixadas para cada um dos considerados culpados, sendo provavelmente diversas, se aceitarmos as descrições divulgadas pelos meios de comunicação.
Todavia a frieza dos enunciados técnicos não basta para examinar a questão. O lançamento de combustível para pôr fogo em um ser humano prostrado na rua envolve um grau de permissividade em que se mesclam o desprezo pelos valores tradicionais e a quase certeza da impunidade. É preciso meditar sobre as atitudes individuais e coletivas relacionadas com a criação, a educação e a disciplina dos jovens brasileiros, em seus heterogêneos ambientes de vida. É necessário avaliar, por exemplo, as influências recebidas, desde a tenra infância, dos desenhos animados, dos filmes de ação, das fantasias interplanetárias, marcados pela violência e pela destruição, que, contrapostos à normalidade da vida, fazem desta uma desalentadora monotonia. Sem esse cuidado, a morte do pataxó Galdino será apenas o que tem sido: um caso de polícia.

Texto Anterior: Execução fiscal
Próximo Texto: Comandantes repudiam proposta de Covas
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.