São Paulo, sábado, 26 de abril de 1997
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Foices e tochas

CARLOS HEITOR CONY

Rio de Janeiro - Antes de embarcar para o Canadá, num bota-fora que os íntimos do Planalto classificaram de velório, o presidente da República condenou com veemência a tocha humana que os rapazes de Brasília providenciaram para iluminar um fim de noite na capital.
Como qualquer outro cidadão, FHC deve estar indignado com o crime que merece ser classificado de hediondo. Mas como presidente da República ele ficou duplamente chateado. O nhenhenhém do seu governo dito moderno se esboroa: os sem-terra desmoralizaram o ministro da Política Fundiária e obrigaram o presidente a recebê-los. E um índio dormindo é queimado por jovens da classe média que pensavam estar queimando um vagabundo.
É uma dupla comédia de erros. Os sem-terra foram considerados arruaceiros. E a desculpa dos jovens criminosos dá a entender que, se fosse um vagabundo, não haveria mal nenhum em incendiá-lo.
Já foi gasta tinta bastante com a marcha da semana passada. Mais tinta será gasta com a morte do índio. Nos tempos de autoritarismo, na mesma ilha da fantasia que é Brasília, jovens da classe média alta mataram e estupraram Ana Lídia.
O governo de então impediu investigações mais sérias, a mídia estava sob censura e o crime ficou impune: não se podia balançar as instituições, por mais criminosas que fossem.
A morte do índio pataxó ocorreu em outro contexto, mas com a mesma explicação: por um lado a impunidade, por outro a convicção de que tudo é permitido desde que não dê bode.
O aborrecimento presidencial tem também uma explicação: seu esforço para apresentar o Brasil como uma ilha da fantasia, governada por um sábio e um justo, resulta inútil e quase ridículo.
A modernidade neoliberal não evitou as foices dos sem-terra. Nem impediu uma tocha humana de iluminar a nossa miséria.

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