São Paulo, sábado, 26 de abril de 1997
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A herança do índio Galdino

LUCIANO MENDES DE ALMEIDA

Que dizer diante de Galdino Jesus dos Santos, índio pataxó, que veio a falecer pelas atrozes queimaduras de que foi vítima, enquanto dormia? Ficamos tristes e estarrecidos. É mais uma prova da maldade humana.
Não conseguimos nos refazer ainda das chacinas de Corumbiara, Eldorado do Carajás, da brutal covardia da Candelária e Vigário Geral, dos abusos da autoridade de Diadema. Como explicar que a pessoa humana seja capaz de torturar e matar, a sangue-frio, o seu semelhante? Qual a raiz de tantas perversidades?
Sabemos, pela revelação, que Deus nos cria por amor e nos destina à felicidade da comunhão com Ele e entre nós.
No entanto, a história está marcada pelo desrespeito a Deus e pelo ódio a nossos semelhantes. Injustiças e violência demonstram a presença do pecado no coração humano e a necessidade do auxílio divino para superar o egoísmo e a maldade. Quem de nós está isento do pecado?
Precisamos todos da misericórdia de Deus, que nos leva ao arrependimento, perdoa nossas faltas e nos ajuda a praticar o mandamento do amor.
Só quem se converte pode entender a mensagem libertadora de Jesus Cristo, que dá sua vida por todos e nos revela, à luz de Deus, a dignidade de toda pessoa humana.
Para Ele não há excluídos. Ensina-nos a superar distâncias, ofensas e ressentimentos. É o mestre do amor gratuito e universal.
Faz-nos capazes de reconciliação com o inimigo e de rezar por quem nos ofende, persegue e calunia. Diante do corpo queimado de Galdino Jesus dos Santos, temos que refletir sobre a atrocidade desse assassinato, que traz à memória outros crimes e obriga-nos a fazer uma descoberta mais profunda.
Esses jovens, que cometeram a crueldade de queimar um mendigo que dormia, são fruto da sociedade à qual todos pertencemos. É a mesma sociedade que expulsou os índios de suas terras, atrasa a demarcação de suas áreas, força os índios a viajarem até Brasília para defender seus direitos, fecha as portas da pensão a Galdino e o constrange a dormir indefeso, colocando-o à mercê do vandalismo.
É a mesma sociedade que ofusca e deforma a consciência e introjeta, em nossa juventude, a atração pela violência, o desprezo pelo mendigo e a pseudo proteção da impunidade.
O hediondo assassinato do pataxó Galdino questiona a todos nós. Sua herança é a oportunidade e a obrigação de uma conversão radical que nos faça reconhecer a maldade que nos invade e a necessidade de uma volta para Deus, da qual nasce o respeito e estima de toda pessoa humana.
Temos que abrir os olhos e o coração para assumir, com firmeza, a promoção da vida desde a sua concepção com os direitos e deveres que decorrem da condição de filhos de Deus e irmãos nossos.
A recente declaração da CNBB, em Itaici, sobre "Vida com dignidade", de 18 de abril, ajuda-nos a explicitar as principais exigências na construção da sociedade justa e solidária, que afaste toda violência e injustiça.
Numa atitude de sincera reparação, procuremos que não tarde mais a demarcação das terras e o apoio fraterno aos nossos índios.

D. Luciano Mendes de Almeida escreve aos sábados nesta coluna.

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