São Paulo, domingo, 4 de maio de 1997
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Freire explica como o saber abre caminhos

DA REDAÇÃO

No último dia 16 de abril, uma quarta-feira, o educador Paulo Freire recebeu em sua casa em São Paulo o jornalista israelense Ethan Bronstein. A entrevista durou cerca de 20 minutos e nela Freire falou sobre sua obra, sobre a morte -que esperava chegar em cinco anos-, sobre o Movimento dos Sem-Terra e sobre sua visão do papel dos professores na transformação do mundo.
O educador morreu às 6h53 de anteontem, em São Paulo, de parada cardíaca, aos 75 anos. Criador de um método de alfabetização que leva seu nome e foi adotado em vários países do mundo, era doutor "honoris causa" por 28 universidades.
Seu método de alfabetizar adultos baseia-se na realidade do aluno. Teve prestígio entre os intelectuais e educadores de esquerda.
A seguir, os principais tópicos do pensar de Paulo Freire, mostrados na entrevista que deu 16 dias antes de morrer.
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CONSCIÊNCIA DO SER
Meu ponto de partida é o seguinte: só os seres que historicamente se tornaram capazes de saber se tornaram ao mesmo tempo capazes de intervir na realidade condicionadora. Indiscutivelmente, a jabuticabeira que eu tenho no meu quintal está submetida a condições climáticas (frio, calor, chuva) e está submetida à maior ou menor presença de pássaros. Está submetida à força de sua própria biologia. Só que ela não sabe disso. A jabuticabeira não se assume como um ser reflexivo que descobre ser condicionado pela história, pelo clima etc.
O que acontece com a jabuticabeira é que ela se adapta, se harmoniza com as condições ambientais.
Nós, homens e mulheres, ao nos descobrir submetidos à influência da família, da raça, da cultura, da economia, da biologia e da genética, tornamo-nos capazes de nos adaptar às condições. Isso, mais para poder melhor interferir no contexto condicionado. Em síntese: só os seres que se percebem condicionados podem deixar de ser determinados. Porque assim nós transformamos a determinação em condicionamento.
EDUCAÇÃO DO SER
A educação, nessa perspectiva, assume um papel de importância fundamental. É que a educação viabiliza a intervenção. Por isso digo: educação sozinha não faz. Mas pode fazer algumas coisas importantes -entre elas abrir caminhos e intervir no mundo.
MOVIMENTO DOS SEM-TERRA
Se você falar com lideranças do MST vai ver a importância que eles dão à educação: é enorme.
No ano passado saiu uma reportagem na Folha em que uma liderança do movimento disse que me tinha na relação bibliográfica dos seus estudos. Ou seja, sou um dos intelectuais natos para a liderança.
Por isso, não é por acaso que eles ganharam este ano um prêmio que corresponde ao Prêmio Nobel da Bélgica -que fui o primeiro a ganhar, há 15 anos.
Eles, os sem-terra, sabem que a educação sozinha não faria a reforma agrária. Mas eles sabem que sem a educação também não se faz reforma agrária.
Eles sabem que sem educação a reforma agrária pode se embananar, pode se obstaculizar no meio do processo. O MST não teria a presença que tem se não soubesse disso. Algo assim: "Estou contente porque hoje eu sei que sou oprimido e sei que preciso mudar".
Hoje, 20 anos depois, o MST faz a grande marcha e ganha 90% da opinião pública. Isso é história. É como um favelado que me disse: "Antes eu tinha vergonha de ser (favelado); hoje quem deve ter vergonha é quem não briga para que isso não exista". Isso é um aumento crítico e fundamental da consciência oprimida. É possível que dentro de dez anos existam mais coisas parecidas com o MST.
ESCOLA
Insisto: quando falo em educação, falo em intervenção -que pode ser no sentido de preservar o status quo ou no sentido de mudá-lo. Minha opção é mudar. A opção de um educador conservador é preservar. A escola é um palco em que ele e eu podemos trabalhar.
Por isso acho que a escola não apenas reproduz, mas também contradiz a reprodução. O papel da contradição da reprodução da educação é dos educadores progressistas. O papel da preservação, dos conservadores.
Como professores, educadores, nós temos que estar engajados num palco de luta permanente, que é a luta pela superação que nós mesmo aceitamos. É preciso estarmos abertos constantemente ao novo e ao diferente para poder crescer e aprender. É preciso aceitar a mudança, a novidade -venha de onde ela vier.
AVALIAÇÃO DE ALUNOS
A prática escolar do educador e do educando têm de ser avaliadas. Essa é uma tese fundamental. Dar notas é uma expressão da avaliação. Se você tira notas (4, 5 ou 6) e coloca letras (A, B, ou C) é a mesma coisa. O que não é possível para mim é deixar de atribuir alguma gradação. O fundamental é diminuir o arbítrio do professor, mas não negar a necessidade de uma certa valoração à prática do aluno.
É preciso democratizar a avaliação, em que você, como professor, discute com os educandos a melhor maneira de avaliar o seu trabalho e o dos alunos.
A MORTE
É difícil lutar em favor da natureza, da ética universal do ser humano, como eu a chamo. Só que a história não se faz ao lado da sua vida, nem da minha. Às vezes nem em 100 anos, só em 200. Eu me vejo muito e faço questão de trabalhar numa dimensão histórica em que eu me perco como indivíduo.
Estou escrevendo um livro agora. Tu achas mesmo que eu iria continuar esse livro se eu pensasse que poderia ver pelo menos um começo das coisas que eu defendo aí? De jeito nenhum! Não dá! Eu morro daqui a cinco anos, seis, dez anos, no máximo. E daqui a 50 o livro pode estar mais bem discutido. Mas é possível que não esteja. A dimensão histórica do meu, do nosso devir, é fundamental para nós. Não é fácil fazer isso.
AUTORITARISMO
No caso brasileiro temos uma tradição muito autoritária. Aceitamos intelectualmente o discurso democrático, mas temos dificuldade de o pôr em prática. Às vezes estamos na luta contra o autoritarismo e nos tornamos profundamente licenciosos. Reconheço que essas coisas não são fáceis, mas são possíveis de ser feitas e vividas.

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