São Paulo, domingo, 11 de maio de 1997
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Esquerda, volver!

MARCOS AUGUSTO GONÇALVES
EDITOR DE DOMINGO

Como o tique do personagem fascista de Stanley Kubrick, em "Dr. Strangelove", também é difícil conter o bracinho autoritário da esquerda. Com todo respeito à dor das famílias e à memória dos que morreram, a idéia de processar Bruno Barreto, diretor de "O Que é Isso Companheiro?", é sintomática.
Ilustra o que foi dito aqui, na semana passada: o filme não passaria na censura dos companheiros revolucionários, que, como se sabe, detêm o monopólio da história.
Na lógica radical de esquerda não há espaço para a diferença: historicamente, o método para tratar a dissensão é idêntico -ainda que mais refinado- ao da direita: eliminação física do dissidente.
Sejamos honestos: os militantes da luta armada e das organizações revolucionárias não combatiam a ditadura militar em nome da democracia política. Combatiam pela revolução marxista-leninista. Todos eram favoráveis ao partido único e à ditadura do proletariado.
Não deixemos, também, recalcado um tema tabu no militarismo de esquerda: o "justiçamento" de companheiros "traidores". Muitos se sentiram chocados quando o "Jonas" do filme avisa que mataria um companheiro em caso de deslize.
Isso não faz dele um simples "facínora", como disseram. Era um princípio reconhecido pelas organizações e, em mais de uma ocasião, levado à prática. Faz parte da história das esquerdas: o comandante do Exército Vermelho, que fez a revolução de 17, foi assassinado pelo comandante do Partido Comunista soviético.
*
É verdade que, à época retratada pelo filme, a inteligência e a justiça estavam do lado da esquerda. A idéia de revolução continha uma forte carga utópica. Tratava-se de criar uma nova sociedade, uma nova vida -e a violência, embora negativa, seria apenas a dor do parto.
A memória da experiência nazifascista, o imperialismo selvagem e a estupidez das ditaduras de direita se agigantavam ante os "desvios" do socialismo real.
Ainda que a barbárie stalinista já estivesse às claras, via-se com certa complacência o endurecimento soviético -um processo gerado pela necessidade de defesa do Estado operário.
Hoje as vísceras do socialismo real estão expostas. Não façamos o papel dos abutres, mas também não fechemos as narinas: o que ali se montou, em tecnologia autoritária, em massacre de individualidades, em negação de liberdades, em extermínio de opositores, foi além de qualquer possibilidade de defesa.
Tudo ainda mais perverso, quando se pensa que todo esse aparato opressor foi posto em funcionamento em nome de um projeto "científico", em nome de um futuro cuja determinação estaria inscrita no DNA da história: matamos, censuramos, prendemos, mas é para o bem da humanidade, para criar um novo mundo, a Disneylândia social fantasiada por Marx...
O fato é que parte da esquerda, ainda hoje, restringe sua indignação à barbárie do Estado de direita e perdoa a sua própria intolerância.
Muitos não conseguem perceber que a história armou-lhes uma armadilha.
Reivindicam a seu favor liberdades políticas que o discurso marxista-leninista e a prática dos Estados socialistas não previam e não concederam a ninguém.
Um mínimo de "autocrítica", companheiros...

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