São Paulo, domingo, 11 de maio de 1997
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Mães guardam segredo da inteligência

GAIL VINES
DA "NEW SCIENTIST"

"Poderíamos fazer filhos lindos", disse uma linda atriz ao dramaturgo irlandês George Bernard Shaw. "Mas", respondeu ele, "e se eles herdassem a minha aparência e a sua inteligência?"
A resposta de Bernard Shaw pode ter sido mais apropriada do que ele mesmo poderia imaginar.
Um trabalho pioneiro feito com camundongos sugere que os genes da mãe desempenham papel dominante no desenvolvimento das partes dos cérebros da prole responsáveis pela inteligência.
Os genes do pai, por outro lado, moldam não tanto a aparência dos filhos quanto as partes do cérebro que influenciam sua natureza emocional. Se essa nova e surpreendente descoberta se aplicar aos humanos, não são apenas os livros de ciência que serão revistos. Mulheres interessadas em ter filhos inteligentes talvez concluam que é perda de tempo dirigir-se ao banco de espermatozóides de vencedores do Prêmio Nobel e, em lugar disso, talvez decidam optar por maridos simpáticos e tolerantes.
Os homens interessados no QI (quociente de inteligência) de seus filhos podem, de repente, começar a achar mais atraentes as mulheres inteligentes. A eugenia pode ressurgir sob nova roupagem, com regimes repressivos autorizando apenas as mulheres mais inteligentes a terem filhos.
Rebuliço social
Os genes estranhos que ameaçam provocar um rebuliço social ainda maior do que a clonagem são os genes "marcados" (imprinted, em inglês).
Dentro das células, os genes vêm aos pares: um vem do pai, e outro, da mãe. Normalmente não é possível diferenciar os dois, porque ambos são igualmente ativos.
Mas os genes "marcados" são diferentes. Eles carregam um rótulo bioquímico que revela a sua origem parental e determina se serão ou não ativos no interior das células da prole. Alguns genes "marcados" funcionam apenas se vêm da mãe. O mesmo gene é "silenciado" quando herdado via espermatozóide, em lugar do óvulo. Outros genes "marcados" operam de modo inverso e só são "ligados" quando herdados do pai.
A "marcação" genômica foi demonstrada em camundongos pela primeira vez em 1984. Muitos cientistas acharam quase inacreditável a idéia de que os genes pudessem se comportar de maneira diferente, dependendo de sua origem parental. Em 1990 já havia sido identificado o primeiro gene "marcado" em camundongos e humanos -um gene do hormônio do crescimento, o fator 2 de crescimento.
Centenas de genes
Alguns genes "marcados" provavelmente são silenciosos apenas durante momentos muito breves do desenvolvimento, ou apenas em determinados tecidos.
Cogita-se que a falta ou o mau funcionamento de determinados genes "marcados" estejam ligados a várias enfermidades humanas, desde a obesidade herdada até o câncer infantil. Essas surpresas são pequenas quando comparadas à descoberta de que os genes "marcados" podem desempenhar um papel importante no funcionamento do órgão mais estreitamente ligado ao gênero humano: o cérebro.
Dois pesquisadores da Universidade de Cambridge -Eric "Barry" Keverne e Azim Surani- têm evidências de que, nos camundongos, os genes da mãe estão ligados ao desenvolvimento dos centros cerebrais "pensantes", ou "executivos", enquanto os genes paternos exercem impacto maior sobre o desenvolvimento do cérebro "emocional". Ainda não se sabe se os genes "marcados" exercem o mesmo efeito sobre o desenvolvimento do cérebro humano, mas duas doenças humanas sugerem que isso é possível. O começo A história começou em 1984, quando Surani e seus colegas de Cambridge criaram embriões de camundongos contendo apenas os genes do pai ou apenas os da mãe.
A idéia era descobrir por que os mamíferos não conseguem se reproduzir por meio da partenogênese, ou seja, a partir de um óvulo não fertilizado, como fazem outros animais. Em lugar disso, terminaram por demonstrar a existência da "marcação".
Para criar embriões "androgenéticos" contendo apenas genes paternos, transferiram o DNA (o material genético) de dois espermatozóides para um óvulo que tivera seu DNA removido. Para criar o equivalente "ginogenético", contendo apenas genes maternos, uniram os cromossomos de dois óvulos não fertilizados. Teoricamente, os embriões deveriam ter se desenvolvido normalmente, porque continham o número correto de cromossomos.
No entanto, quando foram transferidos para o útero de um camundongo fêmea, morreram em poucos dias.
Genes vitais
Os embriões androgenéticos morreram porque certos genes vitais haviam sido "desligados" pelo pai em cada uma das duas cópias, enquanto os embriões ginogenéticos continham um conjunto diferente de genes igualmente vitais "desligados" pela mãe.
Surani demonstrou que os genes "marcados", que são "ligados" apenas quando herdados da mãe, são vitais para o desenvolvimento inicial do embrião propriamente dito, enquanto o legado genético do pai é essencial para o desenvolvimento normal dos tecidos que se transformam na placenta. É por causa dessa "marcação" genética que os mamíferos são incapazes de se reproduzir por partenogênese.
Mas, se os genes "marcados" desempenham papéis tão cruciais e tão distintos nos primeiros dias de vida de um embrião, é possível que também cumpram um papel importante no desenvolvimento posterior, possivelmente até mesmo no cérebro, raciocinaram Surani e Keverne.
Solução
Os dois cientistas pensaram numa solução engenhosa. Descobriram que embriões de camundongos conseguiam sobreviver até aproximadamente o final da gravidez, desde que pelo menos metade de suas células fossem células normais, isto é, células com genes maternos e paternos.
As células restantes do embrião podiam, então, ser preparadas para testar a hipótese de que os genes "marcados" são importantes para o desenvolvimento posterior.
Tudo que precisavam fazer era misturar os embriões androgenéticos ou ginogenéticos especialmente preparados com embriões normais no momento em que ambos ainda se resumiam a algumas poucas células, criando um embrião feito de uma "colcha de retalhos genética", ou quimera. A proporção exata não importava -o importante era observar o que acontecia com a quimera e com as células androgenéticas e ginogenéticas que continha durante a evolução do embrião para o feto.
Surani e Keverne descobriram que embriões com uma dose extra de genes maternos geravam fetos com cabeças grandes (e cérebros) e corpos pequenos. Embriões com dose extra de genes paternos geravam fetos com corpos grandes e uma cabeça pequena.
Destino das células
Embora os animais fossem anormais e não sobrevivessem muito, os resultados confirmaram que os genes "marcados" eram essenciais para o desenvolvimento normal ao longo da gestação. E mais. Genes que apenas são "ligados" se vêm da mãe levam a cérebros grandes, enquanto os herdados do pai geram corpos grandes.
Os pesquisadores também mapearam o destino das células dentro do cérebro das quimeras. Eles construíram quimeras usando embriões androgenéticos e ginogenéticos que continham marcadores genéticos em cada célula -mil cópias do gene da beta globina ou o transgene lac Z.
Surani, Keverne e colegas fizeram, então, finas fatias dos cérebros das quimeras e contaram as células que continham os dois marcadores. Assim, identificaram o número de células que continham apenas genes maternos ou somente genes paternos em seis diferentes partes do cérebro conhecidas por controlar todas as funções cognitivas, do comportamento alimentar até a memória.
Também verificaram que, à medida que os embriões amadureciam, as células que carregavam somente genes paternos passaram a se concentrar no cérebro "emocional" -hipotálamo, amígdala, área pré-óptica e septo. Essas áreas fazem parte do sistema límbico, ligado a comportamentos que asseguram a sobrevivência, como o sexo, alimentação e agressão.
Os pesquisadores não encontraram nenhuma das células derivadas do pai no cérebro "executivo", localizado no córtex, sítio das funções cerebrais avançadas, como a memória e o pensamento consciente, e numa área abaixo, chamada estriado, que inicia e controla os movimentos finos.
Cérebro emocional
O oposto ocorreu nos embriões que eram uma mistura de células normais e maternais. Nesses embriões, as células contendo somente genes maternos estavam ausentes do cérebro emocional, mas se acumularam seletivamente nas regiões executivas do cérebro. À medida que o embrião ficava mais velho e as células se proliferavam, os "cérebros" continham mais e mais células paternas e maternas nos sítios preferenciais.
Keverne e Surani dizem que não é possível afirmar com precisão o que acontece porque quimeras são anormais em pelo menos dois aspectos: têm uma deficiência de um dos genes "marcados" parentais e uma dose excessiva de outro.
Mas uma conclusão parece clara: além dos milhares de genes "não marcados" necessários para construir um cérebro normal, um embrião precisa de um cuidadoso equilíbrio entre as atividades dos genes que recebe de seus pais.
"É um trabalho muito importante e muito promissor", disse Wolf Reik, do Instituto Babraham. Ele admite, entretanto, que ninguém sabe ainda que implicações os achados terão.
Genes maternos
Uma possibilidade é que os genes humanos maternos estão ligados à parte do cérebro que a sociedade mais valoriza -o córtex. No homem, o córtex é responsável pelas habilidades intelectuais sofisticadas, como a linguagem e o planejamento futuro. Os genes do pai parecem estar ligados às áreas do cérebro mais "primitivas". Essas áreas regulam comportamentos mais instintivos, como alimentação, luta e reprodução.
Duas doenças raras no homem, causadas por defeitos em genes "marcados", fornecem evidências de que os genes "marcados" também afetam o desenvolvimento do cérebro humano.
Uma das condições, a síndrome Angelman, aparece quando o bebê perde a função de um gene "marcado" (ou genes) do cromossomo 15. A região é silenciada no pai e, assim, deve ser herdada da mãe. O resultado é o retardo mental, dificuldades na fala etc. -defeitos na atividade controlados pelo córtex e pelo estriado.
A segunda condição, a síndrome Prader-Willi, resulta tipicamente numa desordem cerebral que causa obesidade, a placidez etc. -defeitos comportamentais sob o controle das regiões primitivas do cérebro. Os genes responsáveis são usualmente silenciados na mãe, e devem ser herdados do pai.
O próximo passo agora é descobrir o que cada gene faz, criando um animal nocauteado, isto é um camundongo no qual o gene "marcado" é silenciado, não importando de qual dos pais ele tenha herdado. Uma vez identificados, seria relativamente fácil investigar o papel de seus equivalentes no homem e na mulher. Embora o tema seja excitante, ainda é muito cedo para as mulheres começarem a celebrar o monopólio genético do bem-estar intelectual da espécie humana.

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