São Paulo, domingo, 11 de maio de 1997
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Ad marginem

DÉCIO PIGNATARI
ESPECIAL PARA A FOLHA

Nos fins de 1996, lembranças, levantamentos, opiniões como que comemoraram os 40 anos da poesia concreta no Brasil e no mundo. Antigas e, aparentemente, novas questões ganharam relevo. Interessam-me, no momento, duas delas, com, talvez, mais a metade de uma, e quase todas as suas reverberações. A primeira é quase uma objeção pretensamente absoluta, e não é voz simplesmente de objetores ou inimigos: é de amigos ou, ao menos, de não-adversários manifestos e sistemáticos: são críticos independentes: patenteiam elogios e não refreiam as críticas.
Uma das considerações mais interessantes, que eles julgam fundar-se numa obviedade pragmática irrefutável, poderia ser assim formulada: "Vocês, no 'Plano Piloto para Poesia Concreta', de 1958, declaram, de saída, que está encerrado o ciclo histórico do verso -ou seja: o verso morreu. No entanto, continuam -e não só em traduções- e sem falar em seguidores simpáticos -a praticar o verso".
Não vou estender-me em demasia sobre o que entendo, hoje, por "ciclo histórico do verso", pois o pólo de atração de meu interesse vai mais para o mal-entendimento, ou desentendimento, do, ou dos, sentidos de ruptura e revolução do que para o específico, pontual e metonímico, do que possamos denominar "ciclo histórico do verso".
Furtar-se a este problema, no entanto, abriria uma lacuna que poderia engolfar, ou viciar, a questão maior.
Um minidiscurso sobre verso/prosa implica um reducionismo óbvio; não se pretendendo conclusivo, porém, pode ele servir de sugestão, sumário e agenda de debates nas áreas universitárias, bem como -marginalmente e poderosamente- em setores criativos poéticos.
Passemos, pois, ao subprincipal, à minha visão diacrônica do ciclo histórico do verso -uma hipótese, em termos científicos. Trata-se de uma visão basicamente, porém não exclusivamente, semiótica (e quando falo semiótica, falo Peirce -e não essa mistura espúria de semiótica, eurossemiologia e psicanálise declinante que circula em nosso pobre meio crítico-cultural, jornalístico ou acadêmico).
A hipotaxe é fenômeno recente, não tem mais do que 4.000 anos e foi criação dos árias, um povo do sul da Rússia atual, talvez Ucrânia, que uniu a Índia à Turquia de hoje, a primeira Grécia. Da Índia morena aos dórios de olhos azuis, houve uma mutação, uma multimutação. Mudaram-se os pigmentos da pele, mudaram-se a língua e a linguagem. Tudo era falado, e a fala era como um sentido a mais: tinha cheiro, gosto, textura e som. Mas não tinha código, apenas uma iconicidade dispersa e rudimentar. Era absoluta a fissura entre a fala e a iconografia ou a grafia (Índia, Israel). Basta dizer que nem Sócrates nem Jesus escreveram uma única frase (Sáquia Muni/Buda, talvez). Tróia foi no século 11 a.C.; Homero, em torno de 800 a.C.: jamais escreveu uma só palavra: só se falava e cantava.
Veio então a codificação Morse da fala em signos digitais, o alfabeto greco-fenício. Consolida-se Homero na escrita, ainda todo impregnado dos incríveis formantes da voz. Em Arquíloco, Safo e Alceu -para não falar antes- a escrita alfabética digital vira partitura da voz recuperável. Tudo precedido por, pelo menos, meio milhão de gritos, vozes e desenhos, parataticamente estruturados. Quando se acabaram os desenhos e as vozes paratáticas (línguas) -"et pour cause"-, surgiram os gregos hipotáticos, abstratos, não-icônicos, alfabéticos, lógicos.
Os povos primitivos, segundo Vico, não falavam: cantavam (os japoneses, ainda hoje). A prosa é uma conquista tardia, chegou ao poder com a organização social moderna, a dos gregos, pouco mais de um milênio antes de nossa era. A poesia é teocrática, a prosa humana. A instauração de uma língua/linguagem lógica propiciou as primeiras leituras leigas, não-teocráticas, do cosmo: o fenômeno grego. Por que o Oriente tem dificuldade em ter prosa? Por que o Ocidente tornou-se tão rico em termos propriamente prosaicos? Roma consolidou a lógica, ou seja, a prosa, helênica. O sistema predicativo (especialmente com o verbo ser) e a hipotaxe derrotaram o sistema justapositivo paratático/icônico, passando a ler o universo em termos hierárquicos (causa/efeito) e não teocráticos ou míticos. Prenuncia-se o homem ateu, cicuta para Sócrates (vejam-se as denúncias de Aristófanes).
Espantoso o fenômeno do mundo humano no planeta Terra atual: a ciência agnóstica que vem decifrando o mundo e impondo aos homens a sua leitura (= verdade) não representa mais do que 0,1% da humanidade, demograficamente falando. Especulemos: Spengler acertou quando imaginou massas místicas dominando os sistemas sociais, neste século; ele não vale um quinto da cabeça de Marx, mas venceu. Marx voltará, mas por baixo de Hegel, que entendeu quase tudo ao perceber o processo mental e cultural ascencional rumo à hipotaxe, ao conceito ("Begriff"), à prosa -em que pese o mau humor de Peirce...
Resumo: a prosa foi lentíssima conquista e é coisa muito recente -mas a sua expansão progressiva foi avassaladora, de Gutenberg para cá, especialmente com a revolução industrial, que lançou os burgueses à conquista do mundo (cf. Charles Morazé), ainda que fiquemos no âmbito, apenas, da prosa ficcional. No início dessa arrancada, Camões fica na poesia, Cervantes na prosa (o Quixote é a poesia morrendo às mãos da prosa), Shakespeare explora as virtualidades de ambas. Já em meados do século 19, a prosa está invadindo a área física (digamos assim) da poesia: surgem o poema em prosa e o verso livre. O alarmado Mallarmé detecta o fenômeno e publica, em 1896, a versão final de suas reflexões a respeito, "Crise de Vers" (em verdade, crise da poesia); dá-lhe resposta, no ano seguinte, com "Un Coup de Dés" (socorrendo-se da música e da diagramação de jornal), para terminar seus dias burilando os alexandrinhos salomelodiosos de seu "Hérodiade". Nos inícios deste nosso século, em contragolpes extraordinários, a poesia invade a prosa: as surpresas de Gertrude Stein e James Joyce.
"A poesia concreta é a parataxe da hipotaxe", formulou uma mestranda, ao fim de um curso de semiótica que proferi na Universidade de Indiana (EUA), há muitos anos, o que abriu um animado debate sobre a função poética da linguagem, segundo Roman Jakobson. Hoje percebo que a sua famosa definição -"a poesia é uma hesitação entre o som e o sentido"- pode ser traduzida por: a poesia era/é uma hesitação entre o verso e a prosa. Tenho para mim que a prosa, em todas as suas manifestações, é o principal bastidor de significados da poesia, especialmente da poesia em versos. Já a poesia concreta, aliando explicitamente a iconização à parataxe -mediante, em particular, a especialização, que introduziu a simultaneidade no processo, subvertendo até o som poético-, tem outros bastidores referenciais e decodificadores, além da prosa, e que se situam no universo multimídia. Assim fazendo, recusa-se ela à oposição verso versus prosa, aparta-se dessa contradição superada. Daí que ela dê por encerrado o ciclo histórico do verso, o que não impede que ainda se façam ou venham a fazer-se versos.
Há afinidades eletivas entre os signos e suas formas de organização: a parataxe prefere os ícones, a hipotaxe, os símbolos verbais. A quase-revolução contracultural dos anos 60 foi uma rebeldia da parataxe contra a hipotaxe, do Oriente contra o Ocidente: mas aquele absorveu a hipotaxe, fez uma revolução, e agora a hipotaxe vai absorvendo a parataxe: acabaram-se os orientalismos. Tem início a "belle époque" da classe média mundial. O proletariado vai deixar de existir (Oswald de Andrade acreditava que a razão principal residia na energia nuclear domesticada -mas talvez essa razão esteja com a dinâmica do capitalismo informatizado). De qualquer forma, devemos levar em conta os longos períodos, como queriam os brilhantes historiadores de "Les Annales".
Futurologia é ideologia. Se este século foi da psicanálise, o próximo será da semiótica. E do agnosticismo. Dos ateus e do ateísmo. Os agnósticos são os verdadeiros negros, gays, lésbicas e mulheres deste mundo. Ai dos ateus! Corajoso é François Jacob, respondendo a uma resposta de Pascal: a) Pascal: "Quem procura Deus, acha"; b) Jacob: "Mas só acha o deus que procura". Corajoso é Feyerabend: "A alma é uma quimera social". "Os comunistas trocaram um deus por outro", lembra Comte. Todo brasileiro deveria visitar o túmulo de Comte, no Père Lachaise...
A hipotaxe ordena, hierarquiza (conjunções subordinativas), a parataxe coordena (conjunções coordenativas). Todo poder político paratático, pelo menos 15 vezes milenar, apóia-se em supostas forças extraterrenas; o poder político hipotático, inaugurado com a democracia grega, apóia-se na lógica, ou seja, na palavra humana. Toda a topografia freudiana é montada sobre essa realidade sígnica: paratatismo = inconsciente; hipotatismo = consciente. Donde o sucesso do surrealismo, que só produziu arte de segunda categoria no mundo todo. Toda abordagem psicologizante da arte, por isso mesmo, é uma abordagem com sinal fraco. Fica no gosto-não-gosto subjetivo.
A outra vertente, de Piero della Francesca a Mondrian, a Webern, à poesia concreta é a vertente com sinal forte, na qual a hipotaxe pensa a parataxe. O oposto, no fluxo gaussiano do tempo diacrônico, é impossível. A hipotaxe pode pensar a parataxe, mas a parataxe não pode "pensar" a hipotaxe. Esta é a grandeza e a beleza de Lévi-Strauss e a sua nova visão da ciência antropológica; o caminho contrário são as deliciosas bobagens de Darcy Ribeiro. Mas, sem parataxe, não há festa, nem arte, nenhuma. Claro, estou falando de sintaxe, a física nuclear da língua e da linguagem. Digo, dos signos. E, assim, pode-se traduzir um certo "psicanalês" num certo "semiotiquês". Por exemplo: o que Freud afirma sobre a baixa voltagem, o esgarçamento do superego na mulher, atribuindo-o a uma hesitação no endereçamento da libido feminina, bifurcado entre a mãe e o pai, pode ser traduzido da seguinte forma: a mulher não domina inteiramente a hipotaxe verbal, permanece no limbo da parataxe icônica (que ela chama de "sentimento") -mas isso não se deve a nenhuma mítica do direcionamento do fluxo libidinoso e, sim, a um feixe de causas biossociais e culturais.
Antes de regressarmos à corrente principal, rumo à desembocadura da questão, uma notação importante: os versipoetas são os que menos entendem de versos (e as exceções são importantes), enquanto aqueles que mais entendem de versos são exatamente os que pregam o fim do ciclo histórico do verso. "Amazing!" O Brasil modernista teve um grande homem sutil, aristocrático e preguiçoso, que entendeu muito do assunto (não à toa chegou a fazer poemas concretos): chamou-se Manuel Bandeira.
O verso agoniza, arcaizando-se. Um dia, será "na‹f". Lento e complexo processo. Poetas avançados empregando a segunda pessoa pronominal e suas consequências. O que eu chamo "a língua do tu" -no país do você. Entre outras coisas, a poesia concreta, por via das dúvidas, deu cabo das categorias pronominais. Daí, o objeto saltou para a frente. O objeto sígnico substantivo.
Alterando o registro, vamos, pois, ao quase-pensamento demonstrativo, já que o pensamento propriamente dito, o pensamento conceitual, não é o forte dos objetores. A prosa lógico-hipotática, soldada à ciência, abalou ou liquidou a visão teogônica, teocrática e teológica do mundo e da sociedade. Liquidou? Mesmo depois das agonias de Gutenberg, Copérnico, Lutero e Galileu; mesmo depois das angústias de Descartes e Pascal; mesmo depois da erupção republicana nos Estados Unidos e na França, onde a deusa Razão foi levada ao altar; mesmo depois do assombroso avanço científico e tecno-industrial do século passado, a poesia viu-se mergulhada no universo mágico-icônico-paratático de antigamente. Então, vemos o católico satânico Baudelaire condenando George Sand ao inferno; Mallarmé não desdenhando Sâr Peladan; Eliot convertendo-se a um quase catolicismo anglicano; Joyce escondendo-se embaixo da cama a cada bramido vingativo do trovão; Mondrian envolvido nas fumaças de um guru numerológico e projetando um aposento para Madame Blavatsky, a fundadora da teosofia; Webern e Messiaen, católicos; Stockhausen misturando catolicismo com entidades siderais; e Einstein dizendo que Deus não joga dados (supondo que ele tivesse informações sobre a incompetência divina para a função de crupiê).
Enquanto isso, um número recente da revista "Time" revela o percentual de ateus nos Estados Unidos: 4% da população; no número seguinte, diante da possibilidade da clonagem humana, indaga se o céu existe, se o eu existe. A grande Tsvietáieva teria respondido: "Se houver um Juízo Final de palavras, eu irei para o céu". No Brasil, Manuel Bandeira sofreu horrores, na idade madura, por causa daquele poema do enterro; Mário de Andrade morreu apavorado ante o risco de ir parar naquele círculo do inferno, onde Dante encontrou seu mestre Bruneto Latini; Oswald de Andrade, com a crise de 1929, perdeu a fortuna, o café e a fé. E o atual presidente da nação perdeu uma eleição por titubear em relação à sua crença em Deus, num programa de televisão, o que o obrigou, posteriormente, a algumas bênçãos de medalhinhas. Pelo mesmo motivo, Peirce não foi bem-vindo na universidade americana, embora seu pai fosse personalidade importante em Harvard e nos círculos científicos. A grande arte agnóstica ainda está por ser criada. Poesia em versos é jurássica. Mas o acesso ao parque não é proibido.
A hipotaxe é senhora da lei. E do poder. Mulher que não domina a hipotaxe não chega a postos executivos. Traduzindo: dominar a hipotaxe é dominar a gramática da língua. A grande mídia eletrônica -rádio e televisão computadorizados- é paratática. É por isso que as mulheres se dão bem nela. Traduzindo: 20 palavras. Ponto. Mais 20 palavras. Ponto. Etc. (É óbvio que a observação vale também para os homens.) Definindo hipotaxe: concatenar frases hierarquicamente, unindo-as através de conjunções subordinativas, de modo a montar um discurso, ou seja, um argumento lógico. Frase: conhecer os verbos. Os mal-informados pensam que conhecer a língua é conhecer ortografia. A grande imprensa é basicamente hipotática.
A poesia concreta está para a poesia em versos como a poesia em versos está para a prosa.
Um grande controverso herói da literatura agnóstica deste século: Pound. Cage traduziu o misticismo zen para o pragmatismo americano. Nietzsche ainda teve que discutir com Deus, além de Wagner. Pound nem sequer se dá a esse trabalho.
O cinismo hipotático vence em Borges: já que tudo está dito, faço a paródia de tudo. "Aleph" não seria possível sem a teoria da relatividade. Todos os leitores (médios) acham que Borges é um gênio. Nenhum deles suporta ler as duas páginas de Faulkner sobre o passar do tempo num aposento miserável do Alabama, em 1931, numa mente obscurecida ("Santuário").
Repetindo: os ateus são os verdadeiros negros, mulheres, gays e lésbicas deste mundo. Minoria absoluta. Criptocidadãos. Inconfessáveis. Em qualquer parte da Terra. À beira do terceiro milênio (d.C.). Mas representam o que há de mais avançado no neocórtex cerebral humano atual -neocórtex, de resto, muito recente (cf. Laborit). Graças, principalmente, à universidade.
Depois do dodecafonismo, acabou-se a música tonal? Não. Apenas tornou-se referenciada à escola de Viena. Uma forma de isolamento e preservação do sistema. Daí as agonias de um Bartók, de um Stravinsky; daí a grande música serial dos anos 50 e 60. Depois da música eletroacústica, acabou-se a música acústica? Não. Mas cada som de um músico menor, como Glass, repercute na abóboda de todas as conquistas e aberturas, no sentido de que ele não pode ignorá-las. Quando Debussy começou a compor em tons inteiros, comentou um diplomata: "Ah, mas eu já ouvi isso, há alguns anos, em Bancoc". Não entendeu nem uma coisa nem outra. E Saint-Saëns, depois de ouvir "La Mer": "Não contém sequer uma idéia musical". Não à toa, a melhor coisa que Saint-Saëns compôs foi uma fantasia zoológica... Depois de Picasso, Mondrian, Malevitch, não pode haver um Klee, um Modigliani, um Morandi, um Pollock, um Tobey, um Volpi? Mondrian anunciou o fim da arte pintando óleo sobre tela, como um amador: os originais parecem obra de diletante. A arte acabou? Não. A pintura acabou? Vai acabando (mas leva tempo). José Antônio da Silva e o Bispo do Rosário são grandes artistas brasileiros.
O que nos leva ao segundo -mais breve e não menos polêmico- segmento da epigonia, dos epígonos, do cânone, das filiações, influências etc. Nasceu com o século 20 essa idéia, ou visão de arte ingênua, primitiva, "naive". Não há como duvidar de que essa arte marginal sempre existiu. Ora, quem aponta, expõe, expostula e revela a existência do artista "na‹f" é a vanguarda revolucionária do cubismo. Precedido dos avanços do impressionismo e do pontilhismo, bem como da fotografia e das novas teorias da luz, o cubismo, como que de repente, larga mão da luz/cor e redefine o espaço em função do tempo, em simultaneidade com a teoria da relatividade. Em outros termos: o cubismo proclama o fim do cânone renascentista, com o extermínio da homogeneidade/continuidade do espaço, mediante a incorporação do tempo. Instaura-se a simultaneidade, rompe-se a vetorialização unidirecional da progressão histórica. Então, os cubistas se voltam para a arte africana, a diacronia está em causa, instaura-se a sincronia, os espaços históricos começam a ser percorridos por outros tempos. Mesmo depois de Max Planck, Einstein, Heisenberg, e a despeito do estrondo nuclear, a grande massa mais ou menos civilizada da humanidade continuou a reger suas ações pela velha física newtoniana. O surrealismo "mezzo profondo", de sua parte, seduziu intelectuais e artistas do mundo inteiro e preparou a literatura mediana do segundo pós-guerra (existencialismo, "beat", realismo fantástico hispano-americano). Mas o Brasil preferiu a vertente estruturalista e construtivista: coincidência ou não, a experimental esquisoprosa do "Grande Sertão: Veredas" cruzou-se com a poesia concreta no mesmo ano, 1956: encontro de neocaipirês com o neo-universalês.
A vanguarda artística cubista "descobre" o "na‹f" Rousseau. Nasce a chamada arte ingênua, que não assinala senão o início da história do fim da arte, tal como a conhecemos (mas o mundo inteiro continua a fazer arte, a organizar eventos artísticos, a apreciar arte). Mais um passo e temos os primitivos de vanguarda, fenômeno mais notável nos chamados países em desenvolvimento. Por isso, com isso, tivemos e temos primitivos concretistas. Ora, a poesia concreta veio associada a um forte e inovador arsenal teórico, de modo a criar um novo "mainstream", um novo cânone teórico-prático, o que obstaculizou a sua aceitação pelo estamento crítico, dentro e fora da universidade (com seus frágeis repertórios em formação, de natureza psicossociológica).
O paradoxo do evolver dessa ocorrência artístico-cultural ainda não foi devidamente estudado. Se o cubista descobre o "na‹f", este não vê no cubista a sua referência modelar, que se situa exatamente no universo superado e menosprezado pelo cubista: a arte tradicional acadêmica dos salões e dos museus! E há mais: quando um Roman Jakobson, que foi ligado aos formalistas russos, visita Volpi e mostra interesse por obras ingênuas da mulher e filha (Judite e Djanira) do artista, ele o faz dentro da coerência dos cubistas que descobriram a arte "naive", vendo nela uma manifestação da pura visualidade, como diria Konrad Fiedler. Não é o que se observa no Brasil. De Mário de Andrade até nossos dias, o que vemos são artistas, críticos, intelectuais, colecionadores e apreciadores da arte que detestam o cubismo e a arte experimental em geral, mas adoram a arte primitiva!
E a visão retorcida do nacionalismo de médio e baixo repertórios continua a ser exercitada e exercida também em relação aos atuais primitivos de vanguarda, na área da poesia. Para poder ler e entender a poesia concreta, força era que se seguissem os principais itens de sua bula, o que implicava a idéia de adesão ou solidariedade e apoio, num reconhecimento relativo do obsoletismo de métodos de análises, rotineiramente utilizados nos departamentos de letras e nas resenhas jornalísticas. Problemas de natureza ideológico-cultural estavam também implicados, mas estes discursos eram superfetados e inflados justamente para abafarem e neutralizarem a inferioridade tecno-repertorial. Mas disto não nos ocuparemos; importa dizer que, não podendo encarar a largura e a largueza do rio, puseram-se os referidos professores e críticos à procura de arroios, córregos e ribeirões, onde pudessem saciar a sede de seus métodos habituais. Desse modo, mostram boa face, mais atualizada, ante a pressão dos alunos e leitores interessados, sem prejuízo do bom andamento de suas carreiras. Ocorre ainda que esses estudiosos acadêmicos dominam o discurso hipotático, enquanto os primitivos de vanguarda são basicamente paratáticos e icônicos. Aqueles, portanto, podem preencher os "conteúdos" discursivos que nestes fazem falta: é a sopa no mel.
Para concluir, pode derivar-se daqui não uma lei, mas uma quase-norma indicial: quanto mais teórico um verdadeiro criador artístico, tanto pior para a aceitação de sua obra. Esta quase norma, no entanto, só se aplica ao artista inovador. O artista de repertório médio para baixo só deve preocupar-se com critérios crítico-mercadológicos.

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