São Paulo, domingo, 11 de maio de 1997
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Um suspiro preso no peito

MARILENE FELINTO
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Há mulheres que atingem uma época perfeita em suas vidas, quando o rosto jamais será tão bonito, nem o corpo tão gracioso e forte, disse a dramaturga Lillian Hellman sobre uma amiga sua. É essa espécie de tempo sem idade que está vivendo Renata Sorrah, atualmente interpretando Zenilda, uma dona de bordel à la "Tomates Verdes Fritos", em "A Indomada", novela das 20h da Rede Globo.
Como no filme (de Jon Avnet, 1991), a novela de Aguinaldo Silva e Ricardo Linhares apresenta uma relação ambígua, provavelmente homossexual, entre duas mulheres: Zenilda e Vieira (Catarina Abdalla), responsável pela contabilidade do bordel.
Identificada com papéis de mulheres especiais, de vida irregular e instável -"As Lágrimas Amargas de Petra von Kant" ou "Mary Stuart", no teatro; Heleninha Roithman, na TV, em "Vale Tudo"-, Renata não se importa que essa seja uma marca sua.
"Acho que meu público reconhece em mim esse tipo de emoção, de instabilidade, de um suspiro preso no peito, que eu tenho mesmo. Principalmente as mulheres, por mim, pela minha vida, pelo tipo de papel que eu escolho, sempre dizem que me reconhecem como uma mulher que pensa, que faz o que é urgente fazer."
"Harmonizada com o meu momento", assim ela se definiu para a Revista da Folha, em entrevista em sua casa, no Rio. Depois de dezenas de peças, novelas e alguns filmes em cinema, Renata se sente profissionalmente recompensada, quer como atriz quer como produtora de teatro (produziu e estrelou "Mary Stuart", junto com Xuxa Lopes em 96). Mas ainda tem sonhos de menina. Na sua secretária eletrônica, uma mensagem, também em alemão (sua segunda língua), tem uma explicação: "É na esperança de que um dia Wim Wenders me telefone para filmar com ele", diz, rindo.
Na vida pessoal, sem se poupar de experiências e vivendo tudo com intensidade -foram quatro casamentos e uma filha, hoje com 15 anos-, Renata se diz uma pessoa animada, que "procura razões, apesar de estar difícil, de todo esse panorama que parece mundial ou humano de grande dificuldade".
Na mira da imprensa por conta de seu atual relacionamento com o ator André Gonçalves (seu último trabalho foi o personagem Walter, em "Salsa e Merengue", consagrado como o Sandro de "A Próxima Vítima"), Renata fala sobre o que deve e não deve ser de domínio público na vida de uma atriz.
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Revista - Como é sair de uma Mary Stuart no teatro para uma Zenilda da novela das oito?
Renata Sorrah - É sem comparação. São veículos completamente diferentes. Em teatro, você tem três meses de ensaio para aprofundar o personagem, para entrar no universo do autor, passa por uma espécie de catarse também, uma troca em que o personagem te dá coisas e você dá coisas a ele, quase como se fosse uma psicanálise. Muito interessante. Fazer um Tchekhov ou um Schiller, por exemplo, é entrar num universo de coisas refinadas, de sentimentos refinados, impressos ali, registrados mesmo depois de 200 anos. E eu, como intérprete, além de ler e de me emocionar, eu vou levantar aquelas letras impressas, dar uma terceira dimensão àquilo. Isso é bárbaro, é uma das grandes diferenças entre fazer teatro e TV.
Revista - Então, por comparação, texto de novela é grosseiro?
Sorrah - Não é exatamente grosseiro, é descartável, porque o veículo é assim, mais imediato. E eu não quero dizer com isso que um é bom e o outro ruim. Quando você está fazendo uma novela que dá certo e em que o personagem dá certo, é muito prazeroso também. É bom trabalhar com elenco enorme, de 40 atores, e experimentar o prazer da câmera.
Revista - Qual é o prazer da câmera?
Sorrah - Eu acho que é a situação de emergência que você vive em cada cena, diferente do cinema, em que cada "take" é feito com o maior cuidado. Na TV, se você recebe um roteiro de 30 cenas para fazer num dia, você tem de fazer 30 cenas num dia. É essa a emergência. Você tem de estar muito afinado com tudo, a memória tinindo, pronto para tudo.
Revista - Zenilda é uma personagem quase cômica. Em que você se inspira para interpretá-la?
Sorrah - Ela acabou virando cômica, eu não fiz propositalmente. Não sei direito em que me inspirei para criar. Li algumas coisas, assisti a alguns filmes sobre prostitutas, mas na hora nada me inspirou muito. Acho que a gente tem uns tipos de mulheres fortes assim no Brasil. Eu conheci uma no Nordeste. São mulheres fortes que vivem de administrar seu próprio negócio, sua própria vida e que têm uma mulher do lado, uma companheira que vive para ela, que vive para admirar e cuidar dela. Às vezes, nem são um casal, nem vivem juntas, mas têm essa relação, que eu acho que é a relação da Vieira com a Zenilda na novela. O Aguinaldo realmente conhece esses tipos bem específicos. O que é interessante é que paire essa dúvida na novela também. Ninguém sabe se elas são um casal.
Revista - Você diria que, para a Zenilda, é mais difícil ser a prostituta ou a lésbica?
Sorrah - Eu acho que a Zenilda é muito sozinha. Ela teve de abrir mão de casamento, de homem, tudo porque ela é dona de um bordel. Ela não exerce o "métier", como ela fala, não é uma prostituta, mas é uma trabalhadora, que toca um negócio. É a mulher que mais ganha naquela cidade. Aliás é a única que trabalha, tirando a personagem da Betty Faria, a juíza. Ela dá duro. E ela é uma mulher marcada por ser dona de bordel.
Revista - Que importância personagens marginais como Zenilda podem ter para um público de novela?
Sorrah - Acho importante que a Zenilda seja uma dona de bordel e uma mulher que pode ser uma homossexual ou que pelo menos é aberta a isso. Acho bacana, porque são minorias que estão aí sendo espancadas, isoladas, tratadas de maneira fascista. O bom de novela é o número de pessoas que ela atinge. Se você consegue abrir um pouco a cabeça das pessoas sobre certas coisas, já é bom. Eu acho que é uma maneira de ensinar as pessoas a não julgarem, a não atirarem pedras nas outras.
Revista - Você tem alguma opinião formada sobre prostituição?
Sorrah - Olha, quando eu comecei a fazer a Zenilda, parei para pensar sobre isso, se eu achava bom ou ruim etc. Aí cheguei à conclusão de que não existe isso de bem ou mal em nada. Várias coisas levam uma mulher a ser prostituta. Tem as prostitutas ricas, que não precisam do dinheiro mas fazem o tipo "belle de jour", pelo prazer de dar amor. E as outras, que precisam porque é a única maneira de sobreviver. O ideal seria não haver prostituição, especialmente não de gente de classe mais baixa. Ainda que algumas gostem do que fazem, seria bom se elas tivessem chance de ter uma outra profissão.
Revista - Quem se parece mais com você, Zenilda ou Heleninha?
Sorrah - A Heleninha é mais parecida comigo, embora eu não beba. Mas era uma mulher urbana, neurótica, com problemas de relação, conflitos com a arte, porque ela era pintora. Tudo isso também faz parte do meu universo. Nesse sentido era ótimo interpretar uma mulher que bebia, que tinha esse lado totalmente diferente de mim. Quanto mais próximo o personagem é de você, mais difícil de fazer.
Revista - O que foi melhor até agora, ter 20, 30 ou 40 anos?
Sorrah - Ah, essa é a tal sabedoria da vida, não é? Eu tenho momentos de felicidade agora que eu não tinha aos 20. Mas aos 20, tinha outros momentos que não tenho hoje. É como na profissão de atriz. Aos 20 anos, eu podia ter o prazer de fazer a Nina do Tchekhov. Mas não podia, naquela época, fazer uma Mary Stuart, que hoje eu posso. Nesse sentido, a profissão de atriz é muito generosa, porque ela acompanha a idade da gente. Sempre vai ter papéis para eu fazer.
Revista - O que é público e o que é privado na vida de um ator?
Sorrah - O trabalho é público. Meu trabalho de atriz. O resto, não. Eu mesma, como pessoa, não quero ser nem admirada nem odiada pelo público. É como na vida de todo mundo. Minha intimidade, a história da minha vida, divido com meus amigos, com Julieta (Carneiro da Cunha, bailarina), Soninha (Sônia Braga), Marieta (Severo), Xuxa (Lopes) ou com Maria Bethânia, que são minhas grandes amigas.

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