São Paulo, domingo, 11 de maio de 1997
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Filhos: ter ou não ter

ALEXANDRA OZORIO DE ALMEIDA; ADRIANA VIEIRA

Mulheres desafiam regras sociais e negam que felicidade e realização pessoal estejam ligadas à maternidade
POR ALEXANDRA OZORIO DE ALMEIDA E ADRIANA VIEIRA
FOTOS GUSTAVO LOURENÇÃO
No último ano, vários megastars declararam seu amor à maternidade. Michael Jackson pagou U$ 1,2 milhão a uma enfermeira para gerar um filho seu. Madonna fez sexo com seu treinador pessoal para engravidar. E a "nossa" Xuxa, ainda solteira, já anunciou que em junho estará esperando um bebê.
Nesse novo contexto, no qual pessoas que "têm tudo" --beleza, muito dinheiro e fama- adotam os mais heterodoxos estratagemas para ter um herdeiro, volta à discussão uma questão existencial complicada para muitas mulheres: é preciso ter filho para ser feliz?
A pressão agora parece oposta: se antes o incentivo era para que as mulheres se destacassem no mercado de trabalho, agora está havendo uma revalorização da maternidade. Além dos astros pop, que enaltecem a reprodução como essencial para "preencher a vida", a propaganda está colocando bebês ao lado de todo tipo de produto (de leite a carro).
Nos EUA, já se fala em uma tendência de mulheres que trocam o emprego pelo trabalho de casa para cuidar das crianças, e, na Europa, os governos distribuem benefícios para convencer casais a terem filhos.
Quem opta pela esterilidade sente o peso de ser do contra: sobre elas, recaem os estereótipos de egoístas ("quer o marido só para elas"), infelizes ("deve ter sofrido muito na infância"), encalhadas ("não consegue arrumar um homem") e até pouco femininas ("deve ser sapatão").
A psicanalista norte-americana Jeanne Safer, 49, chegou a escrever um livro ("Além da Maternidade"), no qual justifica sua decisão de viver só com o marido. "Escrevi um pequeno artigo para uma revista sobre a minha história e o retorno foi impressionante, um recorde de cartas. Decidi, então, reunir em livro os depoimentos de 50 mulheres, que como eu, são felizes sem filhos", diz Jeanne, em entrevista à Revista, de Nova York (leia texto à pág. 13).
Jeanne levou cinco anos para decidir se queria ou não ser mãe. Fez um diário, analisou sonhos, escreveu listas de prós e contras. Garante que jamais se arrependeu. "Não olho para trás. Estou bem. Mesmo mulheres mais velhas com as quais conversei não se sentem sozinhas por não terem filhos", garante.
Amor supremo
Jovem, saudável, casada e com uma condição financeira estável, a professora de italiano Cecilia Casini, 33, natural de Florença e há cinco anos no Brasil, tem tudo para ser mãe, mas decidiu não seguir esse caminho.
"Desde pequena, nunca senti aquele desejo de ser mãe. Para mim, é uma bobagem dizer que a mulher só se realiza tendo um filho. Isso até pode ocorrer com algumas mulheres, mas instinto maternal é mito", defende.
Professora no Instituto Italiano Cultural, Cecilia dedica grande parte do seu tempo ao trabalho. "Quando se tem um filho, acho que a pessoa tem de ficar o tempo todo com ele e não abandoná-lo na mão de uma babá. Como eu gosto muito da minha profissão, não iria deixá-la para cuidar de uma criança."
Mas as razões de Cecilia vão além da realização profissional: "Eu não concordo que o amor materno seja o amor supremo. Para mim, é infinitamente superior um amor que você escolhe, como o de uma mulher e um homem. Sendo mãe, você não escolheu o filho, é quase que uma obrigação querer bem àquela criança que nasceu de dentro de você".
Apesar de ser a filha mais velha de uma família tradicional (pais e três irmãos), Cecilia prefere o relacionamento a dois. Chegar em casa após um dia exaustivo de trabalho, tomar vinho ouvindo música ao lado do marido e depois sair (cinema, teatro e concertos) são alguns de seus prazeres. "Uma criança mudaria a nossa relação. Talvez, seja um pouco de egoísmo mesmo", confessa.
Com um filho de 16 anos do primeiro casamento, o marido de Cecilia, o tradutor Laszlo de Zagon, 37, húngaro, não pensa como a mulher: "Eu não tenho muita escolha, aceito a sua posição, está tudo muito definido desde o começo. As razões dela fazem sentido. Mas, se fosse só por mim, teríamos um filho".
Casada há sete anos, Cecilia diz que a mãe dela sempre pede um neto, mas já se acostumou com a idéia. "Ela sabe que eu nunca quis criança", conta.
Para os psicanalistas e antropólogos, o discurso de Jeanne e Cecilia faz sentido. Nenhum deles acredita em "instinto materno". "O amor materno é inteiramente cultural, varia segundo os lugares e a época. A esteira social é que coloca que o relacionamento mais importante de uma mulher é com o filho. Nós somos regulados por essas representações sociais", diz o psicanalista Contardo Calligaris, professor licenciado da Universidade Harvard (EUA).
Para provar que o instinto materno é um dado cultural, a antropóloga Nancy Scheper-Hughes, 52, da Universidade da Califórnia (EUA), desenvolveu uma pesquisa com nordestinas. Scheper-Hughes, que faz pesquisa de campo no Brasil desde 1964, constatou que, devido ao alto índice de mortalidade infantil na região, as mães tendem a "postergar" seu afeto pelos filhos até passar o período de risco (os primeiros meses, em que a chance de morte é alta). "Isso não significa que as nordestinas são insensíveis. É uma forma de defesa cultural às precárias condições de vida em que vivem", diz Scheper-Hughes, em entrevista à Revista, de Berkeley.
Segundo a antropóloga, esse período de risco caiu de um ano para seis meses. "Com a melhoria nos índices de mortalidade, aos seis meses a criança ganha um nome e é batizada."
Livros e gatos
Também antropóloga, a professora-doutora da USP, Maria Lúcia Montes, 54, mistura argumentos pessoais e teóricos para explicar sua opção por não ter filhos.
"A minha decisão está fundamentada na responsabilidade existencial de criar um filho em uma sociedade caótica e perversa, ou seja, acho que não estou apta a pôr um ser humano neste mundo", afirma Maria Lúcia, divorciada há 14 anos.
A professora se considera "workaholic" -trabalha cerca de 18 horas por dia, mesmo já estando aposentada da universidade. Por isso, a carreira também foi fator decisivo na sua opção. "É uma profissão muito difícil de conciliar com a maternidade, porque o meio acadêmico exige um ritmo de trabalho muito intenso, mas não é uma cobrança de valor intelectual. Tenho muitos colegas com filhos."
Para Maria Lúcia, o instinto maternal é "um sentimento socialmente construído". "Minha opção é muito consciente, além de eu não ter tempo para sentir 'vazios'. Meu trabalho, que é o meu grande prazer, sempre ocupou todo o meu tempo."
Ela prefere depositar seu afeto em animais e plantas. Em sua casa, na Freguesia do Ó, zona norte, cuida de 30 gatos, quatro cachorros e várias plantas. "Um filho e um animal têm em comum a vida, que é algo sagrado para mim. A diferença é que com o animal minha responsabilidade é pelo seu bem-estar, saúde, carinho e segurança. Já uma criança depende de toda a sociedade na qual ela vai viver."
O ex-marido de Maria Lúcia queria filhos, mas aceitou a opção dela. Eles ficaram casados por 12 anos, mas, depois do divórcio, ele se casou novamente e teve um filho.
Carioca, Maria Lúcia veio para São Paulo aos cinco meses de idade porque teve poliomielite. Foi criada pela mãe e as tias -o pai ficou no Rio. Mas ela não credita aos problemas na infância sua rejeição à maternidade. "Eu tive uma família ótima, fui criada cercada de muito carinho."
Maria Lúcia deu aula para universitários por 28 anos. "Não posso dizer que tinha uma relação materna com eles, mas o recíproco acontecia. Na cabeça deles, muitas vezes, eu tinha uma função materna, no que diz respeito à autoridade e compreensão."
Ela diz não ter medo da velhice. "Quero trabalhar até morrer. Se não tiver forças para isso, tenho livros para ler nos próximos 150 anos."
Gravidez psicológica
No pólo oposto ao dos antropólogos e psicanalistas, os médicos defendem os benefícios da gravidez e ressaltam as pesquisas que evidenciam a existência de um "instinto materno".
O ginecologista José Bento Souza, 40, do Hospital Albert Einstein (SP), afirma que, do ponto de vista anatômico, a mulher "precisa" ser mãe. "Quando uma pessoa não tem filhos, ela vai contra a natureza, que cobra dela isso. Mulheres que nunca engravidaram correm mais risco de ter câncer no endométrio, de mama e de ovário", diz.
Para falar de instinto, o médico conta casos de gravidez psicológica. "Quando fazia residência no Hospital das Clínicas, atendi uma senhora com o abdômen aumentado, que afirmava estar em trabalho de parto. Examinei o útero e não havia nada. Quando dei a notícia, ela e o marido queriam me bater", diz Souza. Ele explica que essas mulheres não menstruam e chegam a produzir leite.
Como prova da ligação instintiva entre mãe e filho, o neonatologista Manuel de Carvalho, 45, diretor da Clínica Perinatal de Laranjeiras (Rio), cita uma experiência em um hospital de Israel. Pesquisadores selecionaram 46 mães e separaram seus filhos recém-nascidos algumas horas depois do parto. Mesmo com os olhos e nariz tapados, 70% das mães reconheceram seus bebês apenas tocando no dorso de suas mãos. A experiência foi repetida, desta vez com homens no lugar dos bebês. Poucas mulheres conseguiram descobrir qual era a do seu marido entre as mãos masculinas.
No colo dos outros
Mas, mesmo os médicos dizem que não existe uma comprovação física do chamado "relógio biológico", aquela vontade repentina de ter filhos, que assalta as mulheres, principalmente depois dos 30 anos.
Para José Bento Souza, esse fenômeno é psicológico e não pode ser explicado por descargas hormonais. "Se fosse por causa de hormônios, o relógio biológico 'tocaria' entre 18 e 21 anos, a melhor fase para a mulher engravidar. Algumas mulheres têm essas sensações inclusive depois da menopausa", diz.
A advogada Maria Irene dos Santos, 38, que nunca quis ter filhos, conta que há quatro anos sentiu uma vontade grande de engravidar. "Eu via as mulheres grávidas e achava muito bonito. Mas, depois passou, porque eu não queria abrir mão de nada do que conquistei na minha profissão."
Com um namoro que já dura 12 anos, a advogada não quer ouvir falar nem em casamento. "Não sirvo para dona-de-casa, cozinheira, lavadeira e muito menos para mãe. Gosto de criança, mas no colo dos outros", diz.
A realização pessoal da advogada se resume à sua carreira e conquistas materiais. "O meu sonho era ser uma mulher independente, ter meu escritório e um apartamento montado para receber meus amigos. Já consegui tudo isso. Agora, quero adquirir um conjunto comercial. Sou ambiciosa."
Santista, aos 21 anos, Maria Irene veio para São Paulo estudar e morou com uma tia, que considerava "um modelo de mulher". "Solteira, ela sempre foi muito livre. Tinha os melhores carros e roupas e uma vida social intensa", lembra.
Mesmo assim, ela acha que toda mulher tem instinto maternal. "Tenho uma relação muito legal com as minhas sobrinhas. Elas me ligam e pedem tênis, walkman, e eu faço todas as vontades delas. Acho até que elas cobrem esse meu lado maternal carente."
Apesar de todas as certezas, a decisão de não ter filhos provoca sempre frustrações -como tantas outras escolhas feitas na vida.
"Uma mulher que opta por não engravidar, quando chega aos 45 anos, faz um luto definitivo de uma possibilidade biológica que ela não utilizou. Ela não lamenta a sua história, mas sente o fim da possibilidade de uma outra vida, que seria diferente. É uma idade na qual se começa a pensar um monte de coisas, inclusive na velhice", diz Contardo Calligaris.
De seis mulheres entrevistadas em uma pequena reportagem da Folha há sete anos ("Mulheres trocam filhos por carreira e liberdade"), três se tornaram mães. "Estou superfeliz. Meu marido pressionou muito, e, há um ano, tivemos um filho. O instinto maternal aflorou em mim", diz Silvana Giangrande, 39, assessora de imprensa. Em 1990, Silvana dizia: "Quanto mais assisto minhas amigas lidarem com seus filhos, mais desisto de tê-los". Outro filho? "Não, já está bom" (risos).

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