São Paulo, quinta-feira, 22 de maio de 1997
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Fantasia dos sem-teto vira a fila dos com-senha

ELIO GASPARI
COLUNISTA DA FOLHA

Há algo de fantasia naquilo que se supõe ser o Movimento dos Sem-Teto.
Fantasia. Não só será difícil demonstrar que os invasores atiraram na polícia e acertaram neles mesmos, como basta percorrer a área onde foram mortos três cidadãos para se verificar que um grupo de pessoas interessadas em recorrer à violência tinha a sua disposição um verdadeiro arsenal. Em frente a um galpão, a construtora do conjunto habitacional manteve cerca de 5.000 vergalhões durante todos os 17 dias que durou a ocupação. Alguns vergalhões, com cinco metros de comprimento, tinham a grossura de um polegar. Outros a de um dedo mínimo. Seria difícil cortá-los, mas logo ao lado estava um esmeril de muito boa qualidade, afiado.
Em menos de meia hora, a qualquer tempo, eles poderiam ter montado uma das maiores fábricas de estiletes já vista na cidade. A chave elétrica que liga o esmeril está protegida numa caixa fechada por um cadeado banal, daqueles que se arrombam com um martelo de brinquedo. Ninguém tocou na caixa, no esmeril ou nos vergalhões. Ninguém tocou também num estoque de 5.000 tijolos e pelo menos 10 mil telhas empilhados ao lado dos vergalhões. Francisco Ferreira, funcionário da Construtora Múltipla, que conviveu com os invasores por 17 dias, informa que o material de construção guardado no chão foi deixado em paz.
Cícero João da Silva, um pedreiro pernambucano que se orgulha de ser analfabeto e esperto, invadiu um apartamento do primeiro andar do Bloco B. Não se lembra sequer de conversa em torno daquele material. Quando vê a pilha de telhas, recorda-se apenas que elas serviram de proteção para alguns soldados que atiraram nos invasores: "A gente nunca mexeu nisso".
É uma gente que não quer briga porque tem medo. Durante quase meia hora alguns invasores tentaram acordar a vizinhança, pois tinham ouvido que a polícia estava perto, pronta para atacar. Poucas pessoas desceram dos apartamentos, muitos já tinham fugido.
Na outra ponta da fantasia está a noção dos excluídos que finalmente se organizam e fazem ouvir sua voz. Nos conjuntos desocupados ontem, todos com nome de campo de concentração (CDHU C.H. Itaquera B-6 e B-7), não havia organização nem liderança.
Petistas? Durante a noite de segunda-feira, até a chegada do brucutu, dos cães e das tropas de choque masculina e feminina (de batom), uma fogueira reuniu algo como 20 pessoas diante do principal acesso aos blocos. A opinião mais forte que lá se ouviu a respeito de Luís Inácio Lula da Silva foi a de Marcia Maria da Conceição, uma empregada doméstica desempregada de 45 anos, eleitora de Fernando Henrique Cardoso e Celso Pitta:
-Disseram que o Lula ia mudar a bandeira do Brasil. Para nós, isso não dá.
Ela votou em Pitta acreditando que lhe daria uma casa. Mora num terreno ilegal, um oficial de justiça lhe deu 90 dias para sair. Se a invasão tivesse dado certo, teria conseguido apartamento de saleta e dois quartos para não só para ela, mas também para uma filha e um primo. Ao final da manhã voltara a ser sem-teto, transformada na com-senha número 164. Ela tinha um papel que a habilitava a se cadastrar num mutirão do governo estadual. Sua família tinha outros dois.
Os invasores da Fazenda da Juta eram favelados, quase todos desempregados sem o primário completo que, por uma razão ou por outra, acreditaram que poderiam resolver seu problema invadindo um conjunto habitacional do governo do Estado. Em alguns casos eram jovens guardando o lugar para parentes em cujas casas vivem.
Na manhã de terça-feira, enfrentaram uma tropa despreparada. Na de ontem, quando foram despejados, tornaram-se personagens de uma simulação. Como são desorganizados, não cabem na sociedade organizada, mas a liderança oposicionista organizada não pode viver com sem-teto desorganizados.
Às 2h, quando eram 18 as pessoas em torno da fogueira, chegou um carro com Ademar Luís Machado, um veterano invasor, com oito prisões e 40 anos, ligado ao Movimento dos Sem-Teto do ABC. Com um grande chapéu preto, vinha da rodada de negociações com o governo e estava abatido. Informou que a polícia voltaria dentro do poucas horas e que só restava um acordo pelo qual o despejo seria compensado pelas senhas e a promessa de casas no mutirão: "Eles vão conseguir um terreno para a gente construir as 440 casas". Avisou que não tinha jeito, porque o governador não manda no juiz e o juiz mandara despejá-los. Deu seu recado, pediu que se organizasse uma assembléia para as 6h. Despediu-se queixando-se da fome e recomendou: "Não espalhem essa noticia até a hora da assembléia."
Ele tinha saído de uma reunião na delegacia seccional da região. Sentara-se com os chefes das Casas Civil e Militar do governador Covas e fora informado que nada mais havia a se oferecer. Ao final, assinara uma ata. Com ele, três vereadores e dois deputados. Ela informava que na reunião "decidiu-se a seguinte proposta a ser levada pela comissão dos ocupantes da Fazenda da Juta". O que isso significa, não se sabe, pois nem os ocupantes mandaram comissão à delegacia nem os invasores que estavam em volta da fogueira eram uma comissão.
Exatamente a essa hora o coronel Carlos Alberto Camargo, comandante da tropa de choque da Polícia Militar, estava reunido com seus oficiais, terminando o plano de ocupação do conjunto. Usaria 443 homens, algumas dúzias de cachorros e até dois soldados com filmadoras, um dos quais escoltado por uma metralhadora. Pela sua conta, às 6h entraria no conjunto. Nada sabia de senhas nem de acordos. Ao longo da madrugada soube, com precisão, que o ambiente no conjunto era de calma total. Tinha patrulhas e pelo menos um bom informante.
Às 6h, pontualmente, as tropas do coronel Carlos Alberto entraram no conjunto. Nas suas palavras, tinham como objetivo desocupar os 14 blocos de quatro andares, buscar e apreender armas e, além disso, cunhando uma expressão neotucana, providenciar "o transporte solidário" das mudanças.
Quando o coronel entrou, não havia um só dignatário, do governo ou da oposição, para tratar com ele. Ademar Luís Machado, que prometera chegar para a assembléia das 6h, chegou às 7h, quando a área estava inteiramente controlada pela PM e os invasores, em silenciosa ordem, retiravam-se dos edifícios. "Eu fui dormir um pouco e desmaiei, perdi a hora", explicou-se. Dos deputados e vereadores que fizeram o acordo, nem sinal.
O advogado Francisco Roberto Arantes, da Companhia de Desenvolvimento Habitacional e Urbano, do governo do Estado, perdeu a chegada da polícia por menos de dois minutos. Quando ele desceu um barranco em busca do comandante da operação, a tropa já ocupara os principais pontos do conjunto habitacional e a cavalaria galopara pela sua rua principal.
Arantes começou a conversar com o coronel para descobrir uma maneira de distribuir as senhas. Esperava que aparecesse uma liderança capaz de organizar os invasores por blocos. A poucos metros de distância, a oficial de Justiça Clarisse Jerônimo, com uma maço de ordens de despejo, pedia a um oficial:
-Me ajude a conseguir um líder.
-Esse é o nosso problema, respondeu o PM.
Poucos metros adiante, o coronel e o advogado tinham tentado descobrir uma maneira de organizar as senhas mantendo os invasores nos blocos, mas batiam num obstáculo:
-Não sei se eles são ou não são. Dizia o coronel.
-Cadê o Ademar?, perguntava Arantes.
-O que ele falou para vocês às 3h?, indagava o coronel aos invasores que ouviam a conversa. Ninguém sabia.
-Se tivéssemos a lista do Ademar seria mais fácil, arrematava o advogado.
É possível que Ademar Luís Machado venha a se transformar nesse tipo de liderança. A assembléia que não houve porque ele acordou tarde foi substituída por promessas, depois que a situação foi completamente normalizada:
-Nós conseguimos uma vitória. Já imaginou sair sem esperança?
-Aquele pessoal que tem lugar para ir, que tem parentes, vai. Quem não tem, vai para um abrigo. O movimento não vai deixar vocês. Toda semana vamos fazer reunião.
Ninguém sabe quantos favelados com-senha irão às reuniões do movimento dos sem-teto. De um lado, poucos foram os que saíram convencidos de que tinham ganho alguma coisa, mas uma mulher que insultava os oficiais da PM às 8h estava na fila da senha às 9h.

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